Não gosto de
me desfazer de nada. Roupa, revistas, livros, fotos, documentos. E isto é sem
falar de quadros, desenhos, gravuras, esculturas. Sou um guardador, um
conservador, um entulhador, um bazarista... Me defina como melhor entender.
Cartas. Graças
a minha amiga Cecília, feliz soma de bibliotecária e arquivista, acabo de ser
informado de que ainda sou proprietário de 1501 cartas recebidas de 644
correspondentes - sem contar as de minha mãe - durante 56 anos, sendo 1309
escritas a mão e 192 a máquina. 34 não identificadas.
Pego uma
folha azul, envelhecida, tinta azul mais escuro, caligrafia elegante. Um historiador.
Fim dos anos 50. Fala da guerra de Argélia, tema que voltaria com frequência em
boa parte de minha correspondência. Sou contra, mas sem coragem de desertar.
Uma câmera como única arma. Outra, datada de 1968. A jovem decoradora fala com
entusiasmo dos nus do fotógrafo Helmut Newton.
Mergulho em
amizades perdidas, em amores mal esquecidos. Tento lembrar daquele projeto que
tanto me animava e ficou na intenção. Me emociono ao reencontrar colegas do
exército, das escolas de arte. Londres, Paris. No Rio quando meu tio Boris teve
a carteira roubada durante o desfile da Portela.
Não se mandam
mais cartas como antigamente. Nem mesmo cartões postais. A informática chegou
como um rolo-compressor, esmagando a arte de redigir missivas. Se o eventual
leitor tiver 20 ou 30 anos, é provável que nunca tenha esperado a chegada do
carteiro com o coração palpitando. Desconhece a emoção de rasgar o envelope com
seu nome sobrescrito pela mão amada. Desdobrar a folha de papel que podia
conter uma foto, uma folha amarelada, um cheiro evanescente de lavanda ou de
capim-limão. Ignora o sutil prazer de ir ao balcão dos Correios escolher, um a
um, os selos que enfeitarão o endereço de quem você queria seduzir ou de um
amigo filatelista.
Nas cartas
que vou folheando, fala-se de tudo. Do tempo, de contingências materiais, de
encontros e desencontros. De intimidades e alguns excessos. De morte,
casamentos e batizados, de política, de exposições, leituras, filmes. De
viagens, muito.
No fim de
minha vida, não repetirei o absurdo da viúva de Richard Burton, o explorador
que tentou descobrir a nascente do Nilo. Recuso-me a escolher quais cartas vou
deixar, quais vou rasgar. Legado modesto com certeza, mas único, como de todo
ser humano, que fala de um sicrano que, a cavalo sobre dois séculos, atravessou
algumas guerras e viveu em diversos países. Duvidou, se emocionou, brigou,
errou, mas sempre participou. Um dia, talvez minhas cartas ajudem algum
pesquisador a completar o quebra-cabeças de sua investigação. Meu passado não
mais me pertence.
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde 27/01/18
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