sábado, 27 de janeiro de 2018

AS CARTAS QUE VOCÊ ME MANDOU

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Não gosto de me desfazer de nada. Roupa, revistas, livros, fotos, documentos. E isto é sem falar de quadros, desenhos, gravuras, esculturas. Sou um guardador, um conservador, um entulhador, um bazarista... Me defina como melhor entender.




Cartas. Graças a minha amiga Cecília, feliz soma de bibliotecária e arquivista, acabo de ser informado de que ainda sou proprietário de 1501 cartas recebidas de 644 correspondentes - sem contar as de minha mãe - durante 56 anos, sendo 1309 escritas a mão e 192 a máquina. 34 não identificadas.

Pego uma folha azul, envelhecida, tinta azul mais escuro, caligrafia elegante. Um historiador. Fim dos anos 50. Fala da guerra de Argélia, tema que voltaria com frequência em boa parte de minha correspondência. Sou contra, mas sem coragem de desertar. Uma câmera como única arma. Outra, datada de 1968. A jovem decoradora fala com entusiasmo dos nus do fotógrafo Helmut Newton.          
              
Mergulho em amizades perdidas, em amores mal esquecidos. Tento lembrar daquele projeto que tanto me animava e ficou na intenção. Me emociono ao reencontrar colegas do exército, das escolas de arte. Londres, Paris. No Rio quando meu tio Boris teve a carteira roubada durante o desfile da Portela.

Não se mandam mais cartas como antigamente. Nem mesmo cartões postais. A informática chegou como um rolo-compressor, esmagando a arte de redigir missivas. Se o eventual leitor tiver 20 ou 30 anos, é provável que nunca tenha esperado a chegada do carteiro com o coração palpitando. Desconhece a emoção de rasgar o envelope com seu nome sobrescrito pela mão amada. Desdobrar a folha de papel que podia conter uma foto, uma folha amarelada, um cheiro evanescente de lavanda ou de capim-limão. Ignora o sutil prazer de ir ao balcão dos Correios escolher, um a um, os selos que enfeitarão o endereço de quem você queria seduzir ou de um amigo filatelista.

Nas cartas que vou folheando, fala-se de tudo. Do tempo, de contingências materiais, de encontros e desencontros. De intimidades e alguns excessos. De morte, casamentos e batizados, de política, de exposições, leituras, filmes. De viagens, muito.


No fim de minha vida, não repetirei o absurdo da viúva de Richard Burton, o explorador que tentou descobrir a nascente do Nilo. Recuso-me a escolher quais cartas vou deixar, quais vou rasgar. Legado modesto com certeza, mas único, como de todo ser humano, que fala de um sicrano que, a cavalo sobre dois séculos, atravessou algumas guerras e viveu em diversos países. Duvidou, se emocionou, brigou, errou, mas sempre participou. Um dia, talvez minhas cartas ajudem algum pesquisador a completar o quebra-cabeças de sua investigação. Meu passado não mais me pertence. 

Dimitri Ganzelevitch
A Tarde 27/01/18

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