O FILHO DO PADRE
Dentro do carro, estacionado junto ao emprego dela, o diálogo antevia-se tenso. Há dias que a mulher católica o preparava: "Pode acontecer alguma coisa…", ia lançando. Faltava a confirmação, que viria naquele final de tarde de Primavera. Estava grávida. Sem saber qual seria a resposta dele, a paroquiana comunicou-lhe, a medo, o primeiro mês de gestação. O futuro pai sorriu, abraçou-a. Era uma boa notícia para o homem de meia-idade, divertido e eloquente, que há muito desejava em segredo a paternidade. Nem o facto de tal colidir com as suas funções - as de padre (que em latim também quer dizer pai) - o intimidava. "Outro, no meu lugar, ficaria aterrado, mas eu fiquei feliz", recorda o próprio à SÁBADO, sob o nome fictício de Paulo. Seria um acto único - um filho -, não mais: "Se tal acontecesse confirmaria as dúvidas de concubinato que assolam as cabeças dos nossos bispos."
Paulo conhecera-a anos antes, no grupo de jovens da paróquia, sem que houvesse aproximação afectiva. Entretanto afastaram-se e reaproximaram-se tempos depois através do trabalho pastoral. A amizade consolidou-se e o envolvimento aconteceu. Mas estaria o padre preparado para o terramoto social que aí vinha? "É óbvio que me preocupei com as consequências, que seriam dramáticas."
"Jogo de cintura" para conciliar
O pároco Giselo terá sido dos primeiros a assumir a situação em público e a manter-se em funções sob a aprovação do bispo do Funchal (ainda que, à SÁBADO, a diocese se limite a dizer que não comenta). Paulo abriu timidamente caminho: "Imagino a pressão social e eclesial que o padre Giselo está a sofrer neste momento." Paulo viria a sofrer outras. No dia do parto, há menos de cinco anos, ele e a progenitora seguiram para um hospital da zona centro, distante da paróquia do Norte onde o sacerdote estava colocado. O pai assistiu embevecido ao nascimento do filho e perfilhou-o sem hesitações, porque jamais tencionava fazê-lo mediante uma ordem do tribunal. Nos primeiros meses, conciliou com "jogo de cintura", diz, o novo papel com o de pároco experiente. "Para que pudesse prestar o meu contributo às comunidades, mas também estivesse presente no crescimento da criança."
Mas este aparente estado de graça não duraria muito. O bispo da diocese acabou por saber, confrontou-o e as retaliações começaram. Se Paulo queria continuar na vida eclesiástica, teria de fazer escolhas, que implicariam, porventura, a mudança de paróquia. Longe do filho e também dos fiéis que se mantiveram leais a ele, Paulo resistiu à transferência, enfrentou sozinho a distância da hierarquia e de alguns pares. "Fui posto de lado pelos superiores. Tudo quanto de bom pudesse ter feito, desapareceu. Há colegas que olham para mim como se tivesse uma doença rara e contagiosa. E depois há aqueles bons colegas, amigos, que compreendem e apoiam dentro das suas possibilidades." Podia ter virado costas e optado pela dispensa, ou encoberto a situação, mas preferiu ficar pela zona, sem ser dispensado. "Sinto um vazio e desilusão enormes. Deus compensa, mas os homens nada reconhecem. E a hierarquia da Igreja não reconhece absolutamente nada."
Desde então, Paulo vive na precariedade. Tem uma remuneração variável que não paga as contas, tão-pouco cobre as despesas de criar uma criança sem viver maritalmente com a mãe dela. Celebra missas quando calha, mas não perde a fé. Isso nunca. A prová-lo, pediu a um colega que baptizasse o filho. "Não podia deixar que ficasse sem o baptismo. Quero incutir-lhe os mesmos valores morais que recebi, como o respeito pelo próximo." Tem agora mais tempo e paciência para o educar - e recebe as compensações: por exemplo, ouvi-lo dizer as primeiras palavras. "O momento mais feliz da paternidade foi quando ele me chamou, pela primeira vez, de 'pai'. Tinha 15 meses." Quase renegado pela Igreja, a viver um dia de cada vez, o pároco tenciona revelar a verdade ao filho. "Terá de saber." Um dia, com calma, contar-lhe-á tudo. "Talvez quando tiver 10 anos."
Vincent Doyle já não era nenhuma criança quando soube que o falecido padrinho J.J. era, afinal, o seu pai. Tinha 28 anos quando juntou as peças, pelas cartas que J.J. deixara à mãe: era filho de um padre católico. Sendo psicoterapeuta, decidiu ajudar outros em circunstâncias idênticas. Três anos depois da descoberta, fundou em 2014 a associação Coping International na Irlanda. Revelou tudo isto em entrevista à SÁBADO, publicada a 12 de Outubro passado.
Agora o fundador retoma o tema, a pedido da SÁBADO, na perspectiva dos filhos de sacerdotes portugueses que o procuram. Sondou vários sobre se quereriam prestar um depoimento, mesmo sob anonimato, mas nenhum aceitou - o medo e o silêncio prevalecem. "O sigilo é imposto enquanto a criança ainda está no útero. A ciência e a psicologia concordam com a tese de que a criança experimenta um pouco do que a mãe sente durante a gravidez", diz.
Ajuda da comunidade online
Nestes casos, quer dizer sofrimento profundo, que mais tarde se reflecte de múltiplas formas. "Este bullying dura toda a vida. A ansiedade e as repercussões psicológicas são muitas: insónias, paranóia, depressão", acrescenta o responsável. Durante a noite, alguns filhos de padres digitam o link copinginternational.com em busca de apoio online. Vincent registou 3.320 visitas de Portugal, desde Dezembro de 2014 até à data, sendo que a maioria do número de acessos aconteceu antes de o site ganhar visibilidade pública em Agosto de 2017. "Significa que um número considerável de pessoas em Portugal procura ajuda relacionada com este assunto há anos, chegando ao nosso site. A questão que gostaria de colocar à Conferência Episcopal Portuguesa [CEP] é esta: porque é que a Coping recebeu mais de 3.000 visitas de pessoas em Portugal antes do nosso comunicado de imprensa?"
A CEP é a entidade religiosa que reúne a comunidade de bispos e responde genericamente às questões da SÁBADO, sem abordar o tema do bullying dos padres-pais e dos filhos destes, inserido em duas perguntas. Não se perspectivam mudanças, reafirma o padre Manuel Barbosa (porta-voz da CEP): "Mantém-se a disciplina actual da Igreja no que respeita ao celibato dos sacerdotes católicos, em fidelidade, sem vida dupla. Segundo as orientações da Igreja, não está no horizonte a decisão pelo celibato facultativo."
O Papa Francisco não parecia ter tantas certezas quando, em Maio de 2014, falou sobre o celibato religioso em conferência de imprensa, durante a viagem de regresso a Roma procedente da Terra Santa. "Porque o celibato não é um dogma de fé; é uma regra de vida que eu aprecio muito e creio que é um dom para a Igreja. Não sendo um dogma de fé, temos sempre a porta aberta: neste momento, não temos em programa falar disso, pelo menos para já." Em Março de 2017, o Sumo Pontífice admitia ao jornal alemão Die Zeit que "o celibato voluntário não é solução"; não obstante, os casados católicos de "fé e virtude excepcionais" poderiam, eventualmente, tornar-se membros do clero. Mas não seria permitido aos padres solteiros, ordenados, casarem-se depois.
Na prática, a Igreja trava um jogo de forças. De um lado, a linha conservadora tenta impedir a abolição do celibato. Do outro, os progressistas como Anselmo Borges acham inaceitável que os filhos de padres continuem a ser tratados por "sobrinhos" ou "afilhados". "As crianças têm direito à sua identidade e a mãe não pode ficar sozinha e excluída", comenta à SÁBADO. O padre, professor universitário e teólogo acredita que é uma questão de tempo até o celibato se tornar facultativo. "O Papa Francisco tem o problema entre mãos e estou convicto de que, se não vai acabar directamente com a lei, fá-lo-á indirectamente, permitindo a ordenação de homens casados." Mais cauteloso nas palavras, o representante da CEP dá a entender que, caso se repitam situações como a de Giselo Andrade - e há inúmeras, segundo apurou a SÁBADO -, terão de ser analisadas isoladamente. "A haver outros casos semelhantes, é sempre no âmbito diocesano que o processo de discernimento deve acontecer, tendo em conta o bem da criança e da mãe."
Enquanto permanece o dilema, o padre Ernesto Lúcio, 44 anos, decide tirar um ano sabático. A pausa para reflexão deve-se à polémica em dose dupla: primeiro devido ao alegado desfalque que o tornou notícia ("Padre suspeito de tirar 1,5 milhões à Cáritas", lê-se na edição do Correio da Manhã de 14 de Novembro passado); depois porque, em simultâneo, foi tornado público que tinha duas filhas (a mais velha de 14 anos).
No início deste mês, o pároco de várias freguesias de Vila Real deixou de celebrar missas (embora não pense deixar o sacerdócio, que exerce há 21 anos), depois de chamado ao bispo da diocese para se justificar. Sobre a queixa anónima de desvio de fundos, que deu entrada há três anos no Ministério Público, mostrou-se de consciência tranquila: garantiu que não cometera o crime e nem sequer fora constituído arguido. Quanto às filhas não desmentiu, as provas eram irrefutáveis. Duas certidões de nascimento atestavam que perfilhara as crianças. "Foi o mais frontal, corajoso e sério que podia ser, dentro das limitações", enaltece à SÁBADO um amigo, que pede o anonimato.
Padres rodeados de filhos
Pecava, redimia-se em retiros no Luso, reincidia - e assim sucessivamente até perfilhar 13 filhos de cinco mulheres. Fora os ilegítimos que o perpetuaram pela descendência. Segundo as contas dos locais de Condeixa-a-Nova, publicadas na biografia Padre-Boi Não é Lenda, da autoria de Manuel Rodrigues dos Santos e editado em 1990 pela autarquia, chegaram a atribuir-lhe 35 filhos. "O pescoço torcia-se-lhe em meia volta para seguir o andar ondulante das moças e comentar [...]: 'Que bonita cachopa ali vai!'", lê-se no livro.
No final do século XIX, João Augusto Antunes, vulgo padre-boi porque cedia ao pecado da gula, era uma figura proeminente da terra perto de Coimbra. Com quase dois metros de altura, 120 quilos e uma farta cabeleira, não perdia uma oportunidade de aproximação ao sexo oposto. "Amo muito a santa Igreja, mas amo também os meus filhos e as suas mães!"
Os locais perdoavam-lhe os excessos, porque o padre tinha várias virtudes: era um conversador bem-humorado; fazia amizades com facilidade (ficou amigo do Rei D. Carlos, quando o monarca se instalava num solar da vila, a Casa Ramalho); e, sobretudo, destacava-se como mecenas, gastando a fortuna em projectos culturais como o orfeão (a sociedade recreativa notabilizou-se no primeiro quartel do século XX com o epíteto de "rouxinóis de Condeixa" pelas vozes afinadas do coro) e a escola de desenho industrial (que funcionou entre 1914 e 1927). Também foi erguida por ele a capelinha à Senhora das Dores, em 1906, de quem era devoto. É lá que o neto João Azevedo, 54 anos, acende uma vela em sua homenagem.
Do avô paterno herdou o primeiro nome, a derivação da alcunha (tratam-no por João Bezerro) e a queda para as artes. É pintor de cerâmica, há 12 anos que canta no orfeão e considera-se um bom garfo. Tem precisamente um século de diferença do ancestral - nasceram ambos no ano de 63. João começa por dizer à SÁBADO que é a favor do celibato facultativo, porque pelo obrigatório "se calhar perdem-se grandes padres". Contudo, o pai de João (já falecido) evitava tocar no assunto. "Não era um dos 13 perfilhados e naquela altura era difícil falar por causa do estigma."
De Coimbra para cima, sobretudo nas Beiras, as histórias de padres carregados de filhos repetiam-se. Tanto assim era que, já no século XVI, D. Frei Bartolomeu dos Mártires defendia o fim celibato no Concílio de Trento (1562-1563). Saltem barrosani, proclamava em latim, como quem diz "pelo menos no Barroso" poupai os padres. Porque os párocos beirões andavam a cavalo na época, enfrentavam o frio e precisavam de conforto familiar.
A filha mistério
Numa paróquia da Beira Alta, terra de origem de Abílio Louro de Carvalho, este aposentado do ensino secundário de 66 anos recorda-se de ouvir as histórias da família numerosa do padre. "Dos nove filhos que a mulher com quem vivia lhe deu, sempre a mesma e na mesma paróquia, conheci dois. Conheciam o pai como tal, mas tratavam-no como padrinho por obrigação."
O relato de Abílio é corroborado por outro de Serafim Sousa, 79 anos, presidente da assembleia-geral da Fraternitas (associação de padres casados, que não exercem funções pastorais; e conta com 22 anos de existência). Sendo um dos dirigentes, Serafim tem conhecimento de várias situações de filhos de padres que os envolvidos lhe confidenciam ou que sabe através do passa-palavra. Mas o caso mais impressionante veio de um colega dos tempos do seminário de Vila Real. O pároco que Serafim bem conhecia - até discursara na missa de estreia dele, na década de 60 - tinha uma filha secreta, que perfilhara sem ninguém saber. "Costumávamos fazer encontros de ex-seminaristas em Lisboa e, num deles, em 1989, esse padre pediu-me que lhe desse boleia até à zona da Estefânia", conta à SÁBADO.
Serafim não percebeu logo o motivo da deslocação, mas ficou desconfiado. A resposta veio após a morte do colega, que até ao fim da vida exerceu o sacerdócio e foi vítima de um acidente vascular cerebral fulminante, anos depois daquele episódio. "Entrou no carro e morreu imediatamente, a viatura até bateu com a outra da frente. Tinha cerca de 60 anos." Tempos mais tarde, um amigo de ambos, advogado, revelou-lhe o mistério: o padre deixara o património à filha. "Só souberam que ele era o pai daquela criança quando o testamento foi aberto."
Diz a lenda que mulher que se amanceba com padre tem filho lobisomem
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