Sou preconceituoso, sim senhor. E daí? Por acaso você não é? Jura!
Todos nos somos. Não no atacado, claro. Aí somos política e ideologicamente certinhos. Nem tanto a esquerda e muito menos a direita. No meio, com olhares canhotos. Mas no varejo o negócio é outro.
Foi no carnaval de 1987 que assumi
sem remorso meu preconceituismo (sic).
Sabendo que estava para
chegar a Salvador um amigo belga com título sonoro, o tal casal convidou-nos a
uma festa pré, deixando entender que seriamos “os de honra”. Exatas sete noites
antes da folia oficial, teríamos que ir, vestidos a fantasia, á determinado
endereço para rir e dançar e beber e cantar todos os cânticos dos carnavais
passados até Morais Moreira.
Cânticos, sim. Carnaval não é uma religião, neste país onde tudo é o Mais da América Latina e Adjacências? Não se reza de braços e pulmões abertos para o céu, extasiados?...
O convite era para “umas dez
horas da noite”. Francamente. Não é assim que se convida gringos ainda
desajeitados. Por favor!
Ou é 22:15, ou é 23:50. Isto,
sim, é convite claro. Agora “umas dez horas da noite” e ainda por cima para
jantar?!... Só dá constrangimento, porque quando a gente toca o timbre, a
patroa ainda está descansando e o fazendeiro fazendo a barba.
“Sentem aqui só um momento já
venho tome um uísquizinho esteja à vontade a casa é sua desculpe qualquer
coisa” e por ali vai.
Teremos todo o tempo de
examinar a trágica decoração do apart. O endereço já era para se ter mais cautela.
Afinal, de quem mora naquele bairro, no primeiro andar, esquina de duas ruas
barulhentas, acima do pleigraunde (sic) com piscina-banheira, tudo se pode
esperar.
No console junto à entrada, um lindo arranjo de flores artificiais sublinha a beleza do espelho purpurinado. A peça principal do salãozinho é uma autêntica tapeçaria gobelin paraguaia. “Embarque para Citera” de Watteau numa interpretação industrializada e reduzida. Um mimo. Como não tem assento na sala a não ser umas frágeis cadeiras de palhinha, somos acuados no escritório do nobre anfitrião. Um sofá para três pessoas muito magras nos acolhe. Vagamente desconfiados – ainda bem - com a exigência de fantasia, vestimos camisas fartamente coloridas por cima de bermudas brancas e um idiota colar de flores de plástico.
Perto da meia-noite. Chegam
os primeiros convidados. Gritinhos de rigor e beijos mil.
Afinal, é festa ou não é?
A folia começa com fita gravada
de marchinhas com todos os decibéis indispensáveis a alegria do bairro inteiro.
Conversar? Nem pensar, mesmo aos gritos. De comidinha, nada, nem para tirar o
sabor do uísque, aquela coisa abominável com gosto a sabão.
Passamos para a segunda fase.
Na mão uma lata de cerveja, dança-se com sorriso dentudo cidademaravilhosa
(sic). Estamos literalmente ao pé da parede, frente a uma estante com pelo
menos dez livros de capa idêntica e bem arrumadinhos, uns diplomas de concurso
bovino e fotos de casamentos. E mais flores artificiais.
Há lá evidente choque
cultural e, nesta batalha desigual, perdemos feio.
De repente entra uma aloirada
odalisca, perdão uma faraoa, braços hieroglíficos (sic) e umbigo a mostra. O
umbigo será para nos o momento mor da festa. A balzaquiana já deve ter tido um
corpinho ipanema, mas hoje as carnes pedem sombra e descanso. A dança do ventre
coloca ao nível de nosso nariz um umbigo desafiando qualquer desvio.
Umbigo metaformósico (sic), virando olho, virando boca, virando galáxia. Parece perguntar: “Resistireis por quantos séculos?”. Resistimos, suando, até exaustão da suada Cleópatra.
Pontualmente ás duas horas da
manhã, o fim da angústia chega com o jantar, obsessivo objeto de nosso desejo.
Nada comemos antes de vir. Nunca nenhuma refeição nos pareceu tão sublime. Nem
Lucas-Carton, nem Fasano, nem Four Seasons. Aqui e agora matamos dois coelhos
de uma vez ao trazer enfim merecida paz a nossos estômagos revoltados e
pudermos adquirir a chave da liberdade. Ás 2:25 da manhã estamos a descer
correndo a escada granitizada (sic) do espigão, jurando que nunca mais.
Sou preconceituoso, sim
senhor. Festas “metidas” você me pegará, jamais. Prefiro mil vezes aniversário de
costureira ou feijoada de taxista.
E não é demagogia, não
senhor. É amor a honestidade.
Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 17 de dezembro de 2007.
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