Eu tinha 8 anos e meus amigos, 80': a história do menino colombiano que cuidava de idosos e comoveu a França
Albeiro Vargas vivia na pobreza e, em
vez de sair para brincar depois da escola, percorria as casas do seu bairro em
busca de idosos que precisassem de ajuda.
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Rafael Abuchaibe - BBC News Mundo
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Albeiro com uma idosa
Foto: Fundação Albeiro Vargas / BBC
News Brasil
O
pequeno Albeiro, de apenas 8 anos, estava ensinando um idoso a ler e escrever
quando o jornalista francês Tony Comitti o viu pela primeira vez em sua terra
natal, Bucaramanga, no norte da Colômbia.
Comiti cobria havia anos a tumultuada Colômbia do final dos anos 1980 para um dos principais canais da França, quando, quase por acaso, se deparou com a história de uma criança que vivia na pobreza — e que, em vez de sair para brincar depois da escola, percorria as casas do bairro em busca de idosos que precisassem de ajuda.
"Eu estava no cabeleireiro", conta Comiti à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. "Vi a história dele no jornal El Tiempo, pensei que seria uma história positiva, algo que ajudaria a motivar as pessoas".
O que ele não sabia naquele momento, há mais de 30 anos, é que seu
encontro com Albeiro iria promover todo um movimento de apoio e reconhecimento
internacional que atualmente se reflete em uma fundação que ajuda quase 500
idosos em estado de vulnerabilidade no departamento de Santander.as a história
de Albeiro Vargas, o menino que a imprensa colombiana chamava na época de
"O Anjo do norte", não começa em Bucaramanga.
Ela começa, como muitas outras no país, no campo, com o drama do
deslocamento forçado.
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história positiva, algo que ajudaria a motivar as pessoas".
Mas a história de
Albeiro Vargas, o menino que a imprensa colombiana chamava na época de "O
Anjo do norte", não começa em Bucaramanga.
Ela começa, como
muitas outras no país, no campo, com o drama do deslocamento forçado.
Fugindo da violência
Bucaramanga, como outras regiões da Colômbia, começou a observar um
aumento no deslocamento de camponeses com a chegada do tráfico de drogas
Foto: Getty Images /
BBC News Brasil
Antes de Albeiro nascer, seus pais moravam no norte do departamento de
Santander, próximo ao centro urbano de Puerto Wilches.
Eles se dedicavam ao trabalho no campo com seus quatro filhos quando
começaram a chegar ameaças tanto de grupos guerrilheiros de esquerda quanto de
paramilitares de direita.
"Junto com meu pai, minha mãe decide fugir e sair correndo para
proteger meus irmãos mais velhos, com o intuito de cuidar deles, para que não
fossem para os grupos armados. E assim eles chegam a uma zona de invasão no
norte de Bucaramanga", conta à BBC News Mundo Albeiro que, aos 45 anos,
ainda mantém intacta a malandragem infantil do menino que comoveu jornalistas
internacionais há mais de 30 anos.
"Havia montanhas de lixo, e minha mãe e muitas outras famílias
chegaram ali para invadir com caixas de papelão".
"Minha mãe conseguiu construir o barracão dela, conseguiu começar a
vender coisas no bairro, fazer arepas. E vira empiricamente enfermeira, pela
experiência que tinha injetando vacas e curando galinhas e porcos, quando os
animais adoeciam no campo ."
Albeiro nasceu em 1978, em meio a uma família repleta de carências, mas,
acima de tudo, repleta de amor e valores, segundo ele conta à BBC News Mundo.
"Foi
uma infância difícil, numa zona difícil: todos os dias ouvia-se gritos de
abusos cometidos pelos pais com os filhos, e pelos maridos com as
esposas", recorda.
"Mas também podíamos ver na minha casa uma mãe protetora, uma
mãe que todos os dias dava um pão para cada um, e que nos ensinava a dizer
'obrigado'."
"Esses valores importantes que se incutem na família e que
não são uma questão de dinheiro: na riqueza ou na pobreza, são uma questão de
atitude", afirma.
O contato com a velhice
O avô Josefito foi a primeira experiência que Albeiro teve cuidando de
um idoso, aos 6 anos
Foto: Fundação
Albeiro Vargas / BBC News Brasil
Ao completar seis anos, Albeiro recebeu uma notícia: seu avô paterno
viria morar com eles, no norte de Bucaramanga.
Ele também teve que deixar o campo, mas por motivos de saúde.
"Ele trabalhou até receber o diagnóstico de câncer. Naquela época
não havia possibilidade de ir ao hospital. A previdência social era muito
difícil", lembra Albeiro.
"Então minha mãe cuidava dele com os remédios caseiros da época,
era o sogro dela, e com que amor ela fazia isso. Com compaixão ela dava banho
nele, vestia ele, oferecia um cafezinho, enquanto eu assistia."
Albeiro começou simplesmente levando café para o avô, mas pouco a pouco
a relação dos dois ficou mais próxima.
"Ensinei a ele os números de um a dez, e as vogais. Virei professor
dele, porque tudo o que me ensinavam na escola quando eu tinha sete anos, eu
ensinava ao meu avô. E exigia dele como aluno, o repreendia quando não fazia o
dever de casa!"
Albeiro conta que dado o quão perigoso era o bairro — eles estavam
expostos à prostituição, às drogas e, sobretudo, a grupos armados ilegais —,
sua mãe era superprotetora, razão pela qual seu avô, de 87 anos, se tornou seu
melhor amigo.
"Era para ele que eu contava tudo e era eu quem ouvia todas as suas
histórias", relembra.
Poucos meses depois, o câncer deixou Albeiro sem o avô — e com um grande
dilema que precisava resolver de alguma forma.
Brincando a
sério
Com a morte recente do avô, Albeiro concentrou sua atenção em
descobrir quem poderia ser seu novo companheiro de brincadeiras.
"Assim que meu avô morreu, fui até uma vovozinha vizinha e
falei para ela: 'Vovó, quero brincar com você'. E ela me disse: 'Não, o que
você quer é me roubar e tirar sarro de mim.'"
A complicada situação de segurança do bairro fazia com que qualquer
pessoa ficasse alerta diante da chegada de um estranho, principalmente se a
pessoa que recebia a visita fosse idosa e estivesse em situação de
vulnerabilidade.
Por isso, Albeiro traçou um plano: abordaria uma das idosas com o
pedido de "querer brincar, mas também aprender a rezar o rosário",
uma oferta irresistível para uma idosa tradicional de Santander.
Além disso, o truque tinha um valor agregado: "Me tornei o
melhor rezador de todo o bairro", lembra Albeiro com orgulho.
"Cada vez que alguém morria, me contratavam para rezar o
rosário, e foi assim que fiquei conhecido no bairro".
Isso abriu para ele as portas das casas dos idosos do bairro — e para as
histórias dramáticas que os acompanhavam.
"Cheguei na casa de uma vovozinha que tinha cento e poucos anos.
Eram três da tarde. Cheguei para cumprimentá-la, buscar sua amizade, e percebi
que a vovozinha estava com a boca cheia de bitucas de cigarro.", diz
Albeiro, com o frescor da memória, como se tivesse acontecido ontem.
Albeiro
passou a cuidar da saúde dos idosos da região
Foto:
Fundación Albeiro Vargas / BBC News Brasil
"Lembro que a repreendi e disse: 'Vovó,
não seja porca! Isso vai te fazer mal'. E a vovozinha, com uma lágrima no
rosto, me disse: 'Estou com muita fome, não comi nada.'"
"Acredite, naquele momento, me senti impotente. Senti muita
vontade de correr, de fazer algo — e, sim, corri para roubar pão da minha mãe,
roubar porque sabia que minha mãe tinha muita dificuldade para dar de comer a
oito filhos. Levei (o pão) para a vovó, e ela me disse: 'Mas eu não tenho dente
para mastigar.'"
"Peguei um pouco de água, e dei para ela o pão com água.
Tenho este momento gravado (na memória)."
'O anjo do norte' em ação
O jornalista local Euclides Ardila foi o primeiro a divulgar a história
de Albeiro, na sua primeira reportagem para um jornal
Foto: Fundação
Albeiro Vargas / BBC News Brasil
Quando a mãe de Albeiro descobriu quem estava roubando o pão da cozinha,
deu ao filho uma garrafa térmica, que ele poderia encher de café e distribuir
aos idosos pela manhã, antes de ir para a escola. Ele repetia a visita a alguns
na parte da tarde.
"Foi assim que quando tinha oito anos já tinha cerca de 20 amigos
entre 70, 80 e 90 anos", lembra Albeiro, reconhecendo que isso se tornou
uma responsabilidade muito grande para ele sozinho.
"Às vezes, os vovozinhos reclamavam comigo: 'Vamos ver, menino
Albeiro, você não veio ontem, e eu fiquei esperando'. E aquilo se tornou demais
para mim. Foi quando decidi formar meu primeiro conselho de
administração."
Albeiro explica que sua solução consistiu em recorrer a outras crianças
da escola para ajudá-lo no trabalho com os idosos — e que esse grupo funcionava
como haviam aprendido na escola.
"Em uma matéria chamada Ciências Sociais, ensinavam sobre o
Executivo, o Legislativo, o conselho de administração, as funções do
presidente, do secretário", explica.
"Os cadernos estão exatamente aqui", diz ele à BBC News Mundo,
de seu escritório em Bucaramanga, "nos quais redigíamos as atas do
conselho, os compromissos, os cardápios das refeições que levávamos para os
idosos, a contabilidade, quando as pessoas me davam 100 pesos, e assim por
diante."
Albeiro
manteve as contas, assim como as atas de cada uma das sessões que realizou
Foto:
Fundação Albeiro Vargas / BBC News Brasil
Os feitos do "anjo do norte" continuaram crescendo até chegar aos ouvidos do jornalista Euclides Ardila, que publicou sua história no jornal local Vanguardia Liberal. Com isso, o caso ganhou repercussão nacional e não demorou a cruzar as fronteiras do país.
A aparição do anjo
Albeiro Vargas
Foto: Fundação
Albeiro Vargas / BBC News Brasil
Da cadeira do cabeleireiro, onde leu a história pela primeira vez, o
jornalista Tony Comitti diz que começou a planejar como faria a reportagem.
"Pensei em passar três ou quatro dias com o menino. Naquela época,
não havia internet nem celular, então a única forma de entrar em contato com
ele era ir procurá-lo", diz à BBC News Mundo.
Ao chegar ao local onde Albeiro morava, Comitti conta que só precisou
perguntar a uma pessoa: "O anjo? Claro, vamos, eu te levo até ele".
A primeira vez que viu Albeiro, ele relembra, o menino de oito anos
estava ensinando um idoso a ler e escrever.
"Foi muito impactante vê-lo, e ele me disse que eu poderia
segui-lo, então fiz isso, e nos três dias seguintes o vi fazer coisas
absolutamente incríveis".
A reportagem que Comitti havia planejado inicialmente ter uma duração de
três ou quatro minutos virou um documentário de quase meia hora, em que Albeiro
aparecia fazendo o que o tornou famoso, como indo às pressas ao banco para
pagar o aluguel de uma idosa que estava sendo despejada de casa; e coletando
alimentos do comércio local para levar aos "velhinhos".
Em uma cena impactante, Albeiro entra na casa onde uma idosa está
trancada com cadeado — e a leva para dar banho. A mulher sofria de um estado
avançado de demência, e a filha tinha que deixá-la trancada em casa para evitar
que algo acontecesse com ela.
"Cheguei
em Bucaramanga com minhas câmeras, meu equipamento e entrei no táxi. Quando
falei para o taxista para onde estava indo, ele me disse que eu estava louco, e
que iam me roubar, mas eu disse a ele para seguir em frente."
Albeiro,
junto a outras crianças que o ajudaram, perceberam que as temperaturas na casa
improvisada ficavam insuportáveis durante o dia, e usaram a chave que a filha
deixava escondida para dar banho nela na sua ausência.
Com as imagens em mãos, Comitti se despediu de Albeiro e da mãe
dele — e seguiu para Paris para iniciar a edição do documentário.
A comoção na França
Comitti lembra que mostrou as imagens de Albeiro a pelo menos dois
colegas e que, assim que eles viram, começaram a chorar.
"Estávamos esperando uma reação forte do nosso público, mas o
que aconteceu foi insólito", lembra o jornalista.
A rede de televisão recebeu pelo menos 200 ligações de pessoas que
queriam ajudar o pequeno "anjo do norte", o "menino que havia
trocado brincar por ajudar os idosos".
Uma das maiores doações veio de uma mulher que, como lembra
Comitti, "decidiu dar o que tinha, porque era viúva e não tinha filhos nem
ninguém para quem dar".
O programa também gerou furor no público, que queria conhecer
pessoalmente aquele menino que passava por tantas dificuldades e fazia tanto
bem à sua comunidade.
Comitti se lembra com amargura daquele momento e afirma ter rejeitado a
ideia do canal de levar o menino e mãe para a França, com o intuito de fazer o
habitual tour midiático dos acontecimentos da moda:
"Eu disse a eles que não, aquele não era o meu trabalho. Sou
jornalista, e aquilo me parecia terrível."
A viagem aconteceu da mesma forma, sem a participação de Comitti, e o
que ele temia que acontecesse, aconteceu, como lembra Albeiro:
"As pessoas me diziam: Alberro, Alberrito, Albergo. Elas queriam
tocar em mim, e eu não entendia o que estava acontecendo."
"Lembro que me mudaram de hotel, mudaram meu nome porque muitos
jornalistas queriam dar o furo. Queriam ver o Anjo da Colômbia, e esse canal de
televisão me colocou em uma bolha. Foi uma coisa impressionante".
A Fundação
Albeiro Vargas
Um tempo depois de seu retorno à Colômbia, Albeiro recebeu um
convite da embaixada francesa para receber um cheque simbólico com os recursos
que os franceses haviam doado após assistir ao documentário.
Simbólico porque Albeiro só poderia ter acesso aos fundos quando
atingisse a maioridade.
"Perguntei a um amigo: 'Escuta, vão me dar um cheque
simbólico em Bogotá'. E ele me disse: 'Bobo, vão te roubar, simbólico é de
mentira, falso'", lembra Albeiro.
"Estava o diretor do canal de televisão que veio da França. A
esposa do presidente da Colômbia estava lá e todos me disseram: 'Albeiro,
sorria para as câmeras, vamos te dar um cheque'. E eu disse a eles: 'Não,
senhores, me entreguem o dinheiro, não vão me roubar.'"
Quando lhe explicaram que ele teria acesso ao dinheiro quando
fizesse 18 anos, Albeiro respondeu: "Bom então não me importo nem estou
interessado porque quando eu tiver 18 anos os velhos já terão morrido de frio e
fome."
A resposta deixou todos em silêncio.
Através de um acordo segundo o qual tanto a mãe como o embaixador eram
os guardiões do dinheiro, Albeiro conseguiu continuar fazendo o seu trabalho e
começou a pensar em expandir a ação.
Um dos primeiros projetos - aos 14 anos - foi a compra de uma casa
abandonada perto de Bucaramanga, que se expandiu e hoje abriga quase 500 idosos
das áreas vizinhas em situação de pobreza.
A Fundação Albeiro Vargas e Anjos da Guarda também fez parceria com os
56 lares de idosos de Santander para formar cuidadores de 5.500 idosos
abandonados da região.
Além disso, embora muitas crianças do bairro Albeiro tenham seguido
outros caminhos, algumas das pessoas que iniciaram o projeto ainda trabalham
com ele.
"Há um grupo de trabalho de 90 funcionários e não somos
suficientes", afirma Albeiro, frisando que são as doações que ajudam a
fundação a continuar aberta.
O jornalista Comitti diz ter uma foto do pequeno Albeiro na entrada de
sua produtora na França, já que a empresa existe graças ao documentário "O
anjo do norte".
"Às vezes é incrível como uma pessoa pode impactar tantas
vidas", diz Comitti, analisando o caso de Albeiro.
Mas para Albeiro isso não deve ser considerado algo incrível.
"Se há algo a dizer sobre mim é que sou teimoso, mas é uma teimosia
justa, por defender os direitos dos idosos. Acho que é isso que me faz hoje, 39
anos depois, dizer que é possível, sim, você pode mudar o mundo."
"Sim, você pode fazer coisas diferentes,
porque querer é definitivamente poder."