Áreas verdes: A força da grana que destrói coisas belas
Venda de patrimônio ambiental pela prefeitura de Salvador expõe o atropelo de leis em favor da especulação imobiliária
Foto: Reprodução
É essencial que o cidadão entenda o que está em jogo e onde os direitos que possui foram desrespeitados. Do modo com o qual o assunto tem sido tratado, muito provavelmente para dificultar o entendimento da imensa fatia da sociedade que desconhece o vocabulário jurídico, torna-se necessário abordar o tema com a clareza que ele exige. O que passa pela explicação do significado de desafetar, ato em que o Poder Público abdica da finalidade destinada legalmente a determinado bem e, com isso, ganha respaldo para tocar o passo seguinte, a autorização para aliená-lo. Trocando em miúdos, obtém passe-livre para transferir a propriedade, seja por venda, doação, permuta ou concessão.
Na esfera municipal, a desafetação de imóveis que pertencem ao patrimônio público - em suma, eu, você, nós - e a consequente alienação só podem ser feitas com a chancela do Legislativo, representado em Salvador e todas as demais cidades pela Câmara de Vereadores. Até aí, tudo ocorreu dentro dos limites da lei com o projeto encaminhado pelo prefeito Bruno Reis. O problema está nas entrelinhas. Algo que a sabedoria popular sintetizou há séculos através de uma conhecida expressão: "O diabo mora nos detalhes".
Ao pedir autorização para desafetar um punhado de terrenos, o prefeito ignorou dispositivos da legislação que disciplina o uso e ocupação do solo do Município. Para efeito de ilustração, é ela quem impede, por exemplo, que fábricas de produtos químicos ou de materiais inflamáveis sejam instaladas em áreas residenciais ou que empreiteiras tenham salvo-conduto para erguer um megacondomínio de luxo nas dunas de Stella Maris. Como algo ruim sempre pode piorar, a proposta atropelou a lei aprovada durante a gestão do antecessor e padrinho político do prefeito, sob promessas de proteger o que ainda restava de riqueza natural na cidade e evitar prejuízos ao meio-ambiente. A realidade, como se pode constatar, é diferente.
No caso da alienação de bens de uso comum, a exemplo de áreas verdes, há uma vedação legal, exceto em situações especiais nas quais se comprove um claro e evidente interesse público. O que não se aplica à intenção de vendê-las a investidores poderosos que atribuirão, certamente, destino diverso do que se pode traduzir como bem-estar coletivo. Tal proibição não deve ser ignorada pelo simples argumento de que os recursos públicos obtidos com o negócio possam estar a serviço de outro interesse público.
Áreas verdes têm o caráter de bem público de uso comum do povo. São elas que garantem a cobertura vegetal do espaço urbano e contribuem de modo significativo para a qualidade de vida e o equilíbrio ambiental das cidades, em razão de múltiplas e relevantes funções que exerce. Entre as quais, reduzir os níveis de poluição, de ruídos e da temperatura. A progressiva diminuição desses espaços é o que vem transformando Salvador em uma cidade feita de asfalto, cimento, concreto e aço, cada vez mais quente e mais insuportável de se viver. Nesse sentido, a capital baiana trafega na contramão de outros grandes centros de países desenvolvidos, onde a preservação ambiental se sobrepõe aos interesses empresariais e ao predadorismo da especulação imobiliária em toda sua ferocidade.
Dentre os bens desafetados e disponíveis para a alienação, a polêmica maior diz respeito à área localizada na encosta do Corredor da Vitória, enquadrada como Área de Preservação Permanente e protegida pelo Código Florestal, lei federal que também foi tratorizada pelo rolo-compressor da prefeitura. Esse espaço foi doado ao Município exatamente por sua qualificação ambiental, como forma de viabilizar a construção do icônico condomínio Mansão Carlos Costa Pinto.
Agora, a administração pública pretende vender tal área, blindada por leis de proteção em âmbito federal e municipal, já destituída de potencialidade construtiva, para grupos empresariais interessados em levantar um empreendimento imobiliário de alto padrão, e os direitos da coletividade que se danem! É importante ressaltar que a desqualificação de áreas verdes e de preservação permanente para alienação a empreendedores pode abrir um precedente perigoso.
Mais especificamente o fato de que outras áreas semelhantes poderão ser liberadas para os mesmos fins, com a participação ilegal do Poder Público e indiferente à sustentabilidade ambiental. Diante de agressões variadas a princípios administrativos e normas legais, cabe a devida ponderação por parte da prefeitura de Salvador e a atenção vigilante por parte do Ministério Público. É urgente impedir que o bem coletivo seja sepultado pela força da grana que destrói coisas belas.
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