Gravatas azuis: São meninos!
No seu discurso de posse, o novo Ministro da Educação pouco falou de educação. Não apresentou projetos nem metas, não disse como enfrentará os problemas de sua pasta. Prometeu dedicar atenção especial à educação básica, mas não disse de que modo o fará. Sequer assinalou as carências da área, ou disse que meios empregará para obviá-las. Num discurso curto por certo não cabe um programa, porém diretrizes podem ser esboçadas; cabem referências a fontes de inspiração teórica e metodológica para a abordagem dos desafios da educação em país tão desigual e diversificado como o nosso. O Sr. Vélez sequer o tentou. Fez, porém, um diagnóstico: atribuiu todos os males da educação nacional a uma onipresente ideologia de esquerda. Será esta a causa da persistência do analfabetismo (pleno e funcional) em nosso meio? Será a causa da evasão escolar, ou a razão da falta de equipamentos didáticos em nossas escolas públicas? Será o motivo do fraco desempenho de tantos alunos de nossos colégios? Será que assim se explica a situação precária de inúmeros professores em todo o país? É esse o fator que mantém tantos deles mal remunerados, sobrecarregados e maltratados em muitas de nossas instituições de ensino? Cá entre nós, dificilmente técnicos da área ou quaisquer pessoas sensatas o admitirão. Sem dados empíricos que o apoiem, o bizarro diagnóstico apenas traduz uma crença fanática.
Na verdade, em vez do pronunciamento de um educador, o ministro vociferou uma pauta de missionário alucinado. Propôs uma espécie de cruzada contra o marxismo cultural, coisa que não se dignou a definir, a dizer o que seja. Em livros bem conhecidos, Hobsbawm fez um cuidadoso mapeamento das correntes marxistas; no entanto, com toda sua erudição e conhecimento do assunto, o grande historiador não relacionou essa linha que o ministro Vélez evocou. Creio que Sua Excelência deveria identificar a peste a que se refere com tamanho horror; deveria defini-la com clareza, descrevê-la. Um bom diagnóstico tem de ser preciso, ainda mais se tratando de mal tão grave:, segundo o apavorado ministro, o marxismo cultural "faz mal à saúde". (Vai ver, é o responsável pelos surtos da febre amarela, da chicungunya e dengue). Velez também o relaciona com a destrutiva onda globalista que, como diz, pegou carona no pensamento de Gramsci. (Aí está uma boa piada: pelo jeito Sua Excelência pretende rivalizar no campo histriônico com a sua colega Damares).
Pelo que o ministro deu a entender em seu lacrimoso discurso, o marxismo está onipresente na cultura brasileira. Como fará para expurgá-lo? Talvez o tente limpando estantes: proibindo ler, por exemplo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade (para citar apenas alguns dos clássicos de nossa literatura que foram um dia ligados a um partido comunista) e indexando suspeitos como João Cabral de Melo Neto e Antônio Houaiss, entre outros; ou ainda interditando Glauber Rocha, proscrevendo Oscar Niemeyer e jogando nas trevas do esquecimento Mário Schemberg, junto com cientistas do mesmo quilate. Darci Ribeiro? Cruz, credo. Suspeito que nem Florestan Fernandes resista nas bibliotecas nacionais à fúria do nosso Torquemada. Para não provocar xiliques na turma recém-empossada e seus seguidores, nem quero lembrar-me de consagrados teóricos marxistas da nossa terra, como Jacob Gorender, Caio Prado Júnior, Leandro Konder, Ciro Flammarion Cardoso, Istvan Mészáros: a estes Vélez reserva, certamente, a fogueira de sua inquisição.
Perdoem-me os autores que citei, não desejo seu anátema. Serei agora mais cuidadoso. Evitarei especialmente falar de novos marxistas atuantes na praça nacional. Não quero atrair sobre eles a atenção do carrasco do MEC. Aliás, é melhor não citar mais nenhum intelectual brasileiro que se respeite, pois toda a grei pode ser perseguida pelo ministro e seus áulicos sob a acusação de serem "marxistas culturais". Muitos não se alinham com os seguidores fiéis de Marx, mas são cultos - e a nova ultradireita brasileira já acha isso muito perigoso, um tremendo sinal de esquerdismo.
O ministro se propõe a defender os valores cristãos da nossa pátria. Ainda não descobriu que o Brasil é definido por sua lei maior como um país laico. Não teve tempo de ler o artigo 5o da Constituição Brasileira, ou ainda não conseguiu entender o seu texto. Tampouco se deu conta de que nem todos os brasileiros são cristãos. Alguém precisa dizer-lhe que há entre nós mulsumanos, budistas, xintoístas, praticantes de diversos cultos, todos com iguais direitos a sua fé, sua doutrina, seus valores. De acordo com as últimas estatísticas, cresce entre nós o número de pessoas sem religião. O Senhor Vélez pode não gostar deste fato, mas deve reconhecê-lo e respeitar também os ateus do país que adotou. Muitos dos seus correligionários argumentam que é preciso (e bastante) contemplar a maioria - e a maioria é cristã. Por este critério devemos voltar à situação pré-republicana em que o catolicismo era a religião oficial do nosso país: a maioria dos brasileiros ainda é católica. Para ser coerente, o ministro Vélez deveria propor uma nova concordata capaz de levar-nos de volta ao status religioso do Império. Mas duvido que a bancada evangélica aceite essa proposta.
Toco num ponto delicado para os novos governantes do Brasil e seus adeptos. Para sua estreita bitola, só religiosos têm moral, só cristãos têm valores dignos de respeito. Na família e na igreja cristã, eles veem os impolutos nichos da moralidade. Mas recentemente ficamos sabendo por uma ministra que justamente no seio de uma igreja cristã, a que seus próprios pais a levavam, uma menina idefesa foi várias vezes estuprada, abusada sistematicamente, sem que seus pobres genitores se dessem conta disso. Não parece ser um caso único. Pedofilia e abusos de toda espécie têm ocorrido em diferentes igrejas de confissão cristã, embora praticantes sérios do cristianismo combatam estes crimes. A religião pode servir também a gente perversa para encobrir sua violência, sua maldade. Quantos joões de deus andam por aí cometendo infâmias? A corajosa mulher que se empenhou no combate à rede criminosa do médium de Abadiânia promete desmascarar um bando de líderes religiosos da mesma laia - e de diferentes credos.
Um educador deve preocupar-se com a situação nada exemplar das famílias brasileiras em que, segundo as estatísticas, a violência doméstica tem crescido furiosamente. Não será combatendo o fantasma do marxismo cultural que se há de dar remédio a essa desgraça, à maré montante do feminicídio, das sevícias a que mulheres e crianças se veem sujeitas em seus lares. Tampouco se alcançará mudar essa tragédia atacando o espantalho da ideologia de gênero.
Aí está outra coisa que o ministro Velez abomina, mas sem dizer por que. Condena sem argumento, sem raciocíno. Ora, como qualquer leitor de estudos de sociologia ou de antropologia logo aprende, ideologia de gênero todo o mundo tem. Em qualquer cultura, ou sociedade, o senso comum desenha as categorias de gênero e sexualidade de modo muito convincente, pré-reflexivo. A quem não se aplica a examiná-las de modo crítico, essas categorias parecem naturais, ficam "congeladas" em sua mente.
Abominar o que chama de ideologia de gênero é um traço da ideologia de gênero do ministro. A tese implícita que ele sustenta negativamente é bem conhecida: a admissão exclusiva de uma sexualidade binária, que se limita à oposição de masculino a feminino sem admitir qualquer interferência entre esses polos, nada que os assimile, nenhum outro campo entre ou para além deles. Na ótica veleziana, acatar outra categoria (como agora fazem oficialmente os alemães, admitindo que em seu país as pessoas possam classificar-se num terceiro gênero, trans) representa coisa abominável e antinatural. Creio que o ministro Vélez terá de proscrever a etologia: os estudiosos do comportamento animal mostram com clareza que as condutas sexuais de muitos animais superiores vão além das opções do referido binário. Para um veleziano, a natureza seria, pois, antinatural.
Ciência à parte, a ideologia de gênero do ministro tem uma implicação perigosa, nefasta: leva a proscrever a educação sexual nas escolas. Suprime assim um recurso capaz de evitar a gravidez precoce de adolescentes, a difusão de DST, a violência sexista e homofóbica. Os prejuízos deste credo bizarro do ministro podem ser muito grandes. Resta a esperança de que ele esqueça seus pavores (olvide as fantasias neuróticas de sua turma que sonha com mamadeiras de piroca e kit gay). Tomara também que ele vença a paranoia e deixe de ver ameaça em todo pensamento livre. E comece a estudar. Nunca é tarde.
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