sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

O XINGU VIOLENTADO

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Sinto-me consternado com a situação dos índios do Brasil, mais vulneráveis do nunca nos dias de hoje. Me preocupam de modo particular as ameças que impendem sobre os xinguanos. Sei que vários outros povos indígenas deste país estão a sofrer todo tipo de violências. Minha preocupação especial com a gente do Xingu decorre da ligação pessoal que desenvolvi com eles e da esperança que desde o primeiro momento encarnaram (e ainda encarnam) aos meus olhos. Uma temporada que lá passei me marcou profundamente. Encantei-me com a civilização xinguana. Sei que muitos estranharão a palavra que usei – civilização - mas tenho bons motivos para empregá-la. Na bacia dos formadores do Rio Xingu diferentes povos se abrigaram, resistindo ao avanço das frentes neobrasileiras, e acabaram por formar, ao longo do tempo, uma autêntica ecumene: criaram uma cultura comum, sem sacrifício das diferenças que singularizam as distintas sociedades, línguas e estilos de vida que lá convivem. Dá-se o nome técnico de ecumene a semelhante formação, que ao longo da história tem sido matriz de novos avanços no desenvolvimento humano. A unidade incontestável e a diversidade evidente do mundo xinguano desde muito fascinam os antropólogos. Seu desenho corresponde, sim, a uma bela e promissora civilização selvagem, como continuo a dizer, sem medo do aparente paradoxo. O monumento mais visível desta civilização é o próprio Xingu: as matas preservadas, melhor dizendo cultivadas (desde séculos, como monstram os arqueólogos), a rede labiríntica e majestosa de rios e lagos, a savana carinhosamente trilhada. Sua arte, sua mítica, seus belos rituais pan-xinguanos, sua poética plural constituem outro acervo digno de considerer-se patrimônio da humanidade. 
Digam-me agora, amigos, de que lado está a civilização: com aqueles que preservam, ou com os que destroem? Com os povos que foram capazes de concertar a chamada “Pax Xinguana”, vencendo antigas inimizades, ou com os seus poderosos agressores de hoje? Com quem mantém vivas as matas ou quem as quer derrubar? Com quem envenena rios ou com quem os respeita? 
No Xingu, eu me aproximei mais dos índios Kamayurá. Estudei sua mítica, sua cosmologia, seu rico pensamento. Entre os amigos que lá fiz destaco a figura do saudoso Tacuman, cacique e payé, a quem devo muito do que pude aprender sobre o xamanismo xinguano. Por um curto período em que esteve em Salvador, Tacuman se hospedou em nossa casa. Foi uma bênção. Até hoje Regina e eu nos lembramos com saudade de suas histórias, de sua simpatia irradiante, do seu sorriso afável. Não só lá na sua aldeia como também aqui, quando o tive sob meu teto, eu me senti acolhido por ele. Por isso o tomo agora como símbolo de seu povo generoso, alegre e hospitaleiro. Gente assim merece respeito, atenção, carinho. Mas hoje vejo com tristeza a Terra indígena do Xingu ilhada, circundada por empreendedores gananciosos que a empobrecem, poluem seus rios, comprometem a vitalidade desse belo nicho, um valioso ecossistema. Vejo o magnífico Rio Xingu violentado e temo pelo futuro dos seus ribeirinhos, em particular dos indígenas. Infelizmente eles estão sujeitos a todo tipo de esbulhos e logros. 
Há coisa de uma semana li na revista Época (04.02.19) uma reportagem pungente de Natalia Portinari e Vinicius Sassine. A matéria, muito bem feita, me deixou indignado. Conta a história de Lulu Kamayurá, hoje uma jovem de 20 anos, que ainda criança (com 6 anos de idade) foi tirada de sua família pela pastora Damares e sua auxiliar Márcia Suzuki, que usando o pretexto de propiciar à menina um tratamento dentário a levaram consigo, prometendo devolvê-la à avô que a criou, mas nunca o fizeram. A criança nasceu com problemas sérios de saúde e como a mãe não tinha condições de criá-la o seu tio Pirakumã a entregou à avô paterna, Tanumakaru, graças a cujos cuidados (e à assistência dos medicos da Funai) a pequena sobreviveu. A Avó afirma que a menina foi levada “na marra”. Damares nega e retém Lulu, que chama de filha, mas não adotou. Segundo os jornalistas, a pastora disse num canal evangélico do You Tube que sua “filha” (Lulu) “foi salva do sacrifício” pois “no povo dela, quando Lulu nasceu, mãe solteira não podia criar filhos e tinha de matar o bebê”; em vista disso, garantiu a reverenda, “Lulu acabou sendo abandonada”. Na mesma ocasião a pastora produziu outra justificativa de sua atitude, contradizendo a primeira alegação: a família que havia pegado a menina para criar “não estava dando conta”. Quer dizer, a garota NÃO estava abandonada. A história tem furos, como se vê. Há muitas décadas não se pratica neonaticídio entre os Kamayurá e mesmo quando havia essa prática (que não era impositiva), quando uma mulher tinha uma criança indesejada bastava que alguém se dissesse disposto a criá-la para impedir o ato. Como a propria Damares acabou por admitir, Lulu foi adotada na tribo por parentes próximos. Hoje adulta, aculturada em novo meio, Lulu sente-se presa à nova “mãe”, como muitas vezes sucede com crianças cedo transferidas para um lar diferente. A velha Tanumakaru ainda quer para si a filha de seu filho, que ela acolheu amorosamente na primeira infância. Afirma que nunca a quis dar a outra pessoa. Acredito nela. Por que mentiria a pobre anciã? 
Quanto à credibilidade da pastora, a pergunta é outra: Quem põe a mão no fogo? Esta senhora se já declarou Mestra em Educação e Direito Constitucional e da Família. Fez essa declaração publicamente numa palestra que deu no Rio Grande do Sul, em 2013. Mas logo se descobriu que ela não fez fez mestrado em lugar algum: veja-se a propósito a Folha de São Paulo de 31 de janeiro de 2019. Questionada, Damares “explicou” que seu mestrado é “bíblico”. Interessante, não? Como se chama quem se pavoneia com títulos que efetivamente não possui? 
Veja-se agora esta outra declaração da pastora, em palestra realizada em 2013 na Primeira Igreja Batista de Campo Grande: 
“Na Holanda, os especialistas ensinam que o menino tem que ser masturbado com 7 meses de idade, para quando chegar na fase adulta ele possa ser um homem saudável sexualmente, e a menina tem que ter a vagina manipulada desde cedo, para que ela tenha prazer na fase adulta”.
Essa palestra sórdida foi gravada num video que a imprensa holandesa resgatou. É fácil imaginar a reação do povo ofendido. E a vergonha que todo brasileiro decente experimenta com tal notícia. Sim, só pessoas MUITO estúpidas podem acreditar em tamanha barbaridade, ou em qualquer das fantasias perversas da mesma senhora, que também brindou seus fiéis com a lenda insana da mamadeira de piroca. Como explicar aos holandeses que sua nefanda caluniadora foi aqui nomeada ministra da Família e dos Direitos Humanos? Não parece difícil: eles por certo já sabem quem a nomeou. Mesmo assim, fica o vexame para todo o Brasil. Que pensar do país em que uma Damares tem tal posto? 
Podemos ainda defender-nos: o Brasil é também a terra de Sabrina Bittencourt, heroica mulher que desmascarou o sinistro medium de Abadiana ironicamente chamado João “de Deus” e prometia fazer o mesmo com uma série de “religiosos” do mesmo naipe. Mas a heroica Sabrina foi levada ao suicídio pelas ameaças e perseguições dos infames bandidos que denunciava. Com que cara ficamos? 
Bem, a propósito temos outro dado. Na edição de 13 de fevereiro de 2019 da revista Carta Capital, no. 1041, Fred Melo Paiva, à p. 37 da matéria intitulada “Vá em paz, minha amiga”, conta o que Sabrina Bittencourt lhe revelou pouco antes de morrer. Ela investigava o envolvimento da quadrilha do médium facínora com uma rede internacional de tráfico de crianças e tinha conseguido pistas importantes. Em 27 de janeiro, escrevendo ao amigo, Sabrina mencionou Damares Alves: “A sinistra ministra está colocando os seus milhões de soldadinhos para me difamarem na internet, porque estamos denunciando a ONG dela, que trafica crianças indígenas. Ela sabe que estou por trás disso”. 
Penso que já temos elementos para avaliar a credibilidade da ministra Damares Alves. Eu por mim prefiro crer em Tanumakaru e em Sabrina Bittencourt. Fico com elas. 
E você?

Ordep Jose Trindade Serra

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