A ascensão do ‘narcopentecostalismo’ no Rio de Janeiro
Parte da cúpula da facção Terceiro Comando Puro se converteu a igrejas evangélicas neopentecostais. Peixão, chefe do crime no conjunto de favelas chamado Complexo de Israel, se refere aos seus soldados como Exército do Deus Vivo
No Alcorão e na bíblia hebraica, Arão é apontado como o irmão mais velho de Moisés e um profeta de Javé, o deus de Israel. Nascido em 1396 antes de Cristo, seu nome na língua judaica significa “pai de mártires”. No Rio de Janeiro, em 2021, Arão é o apelido Álvaro Malaquias Santa Rosa, 33 anos, traficante que comanda o Complexo de Israel, conjunto de favelas que abriga mais de 130.000 pessoas na zona norte da capital fluminense. Uma das principais lideranças da facção criminosa Terceiro Comando Puro, o TCP, ele tem sob seu comando centenas de “mártires” armados com fuzis de assalto prontos para matar ou morrer na defesa dos pontos de venda de droga nas comunidades de Parada de Lucas, Cidade Alta, Vigário Geral, Pica-Pau e Cinco Bocas. Essa não é a única função deste moderno Arão do crime organizado: existem indícios de que ele teria sido ordenado pastor de uma igreja evangélica, segundo investigações da Polícia Civil.
O traficante, que também responde pelo vulgo Peixão —uma alusão ao antigo símbolo do cristianismo— determinou que fossem erguidas bandeiras de Israel em diversos pontos dos territórios controlados por ele. A estrela de Davi, símbolo maior do judaísmo, também estampa muros nas ruas e vielas do Complexo —uma delas pode ser avistada da avenida Brasil, uma das principais do Rio. O traficante leva a sério seus estudos de religião. Durante uma ação no local, policiais encontraram um esconderijo subterrâneo atribuído a ele: dentro do pequeno bunker, coletes à prova de bala, munições e um exemplar da Torá, o livro sagrado judeu, segundo reportagem do jornal O Globo.
O uso da simbologia do Estado de Israel por parte de um traficante evangélico é justificado porque, para algumas das correntes das igrejas neopentecostais, a criação de Israel foi um sinal da volta de Jesus Cristo e a confirmação de promessas bíblicas do Antigo Testamento. Logo, algo a ser celebrado. O próprio bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, reza alguns cultos com um kipá, o tradicional chapéu judaico, e utiliza vestimentas e adornos tradicionais do país.
As referências religiosas não param aí. O grupo de Peixão também se autodenomina Exército do Deus Vivo, tropa do Arão ou Bonde da Cabala (em referência a uma antiga tradição mística judaica). O traficante escolheu como símbolo pessoal o Peixonauta, personagem de desenho animado representado por um peixe que utiliza um capacete de astronauta. Grafites com este herói incomum também estampam as paredes do complexo. O fervor religioso e a simbologia infantil, no entanto, não se traduzem em uma gestão pacífica dos territórios do conjunto de favelas: foragido há quase uma década, Peixão responde por ao menos 20 processos, com acusações que vão do tráfico de drogas a homicídio. Alguns dos assassinatos cometidos por seu exército contaram com requintes de crueldade, com corpos esquartejados e carbonizados.
Em um áudio que circula em grupos de WhatsApp de moradores do complexo atribuído a Peixão, ele fala sobre a situação nas comunidades que controla: “Se você falar com pessoas facciosas [que integram facção] do CV [Comando Vermelho, rivais do TCP], vão dizer que nós é só coisa ruim. Mas se tu falar com alguém que gosta de ti, vão te falar o que tamo fazendo de bom aqui. União maneira, povo feliz. Ainda há muito o que fazer, mas tá muito diferente do que tava”, diz o traficante. “O que eu posso te falar é que a gente aqui é puro, não fechamos a porta para ninguém. Se você estiver com seu coração puro e transparente e quiser estar aqui, posso até te armar, te deixar pesado”, diz o chefe a um interlocutor desconhecido. “Mas você vai ser um em meio a centenas armados”, diz em referência ao Exército do Deus Vivo sob seu comando.
A história do Complexo de Israel, que se consolidou em 2020 em meio à pandemia do novo coronavírus, começou antes de Peixão. Um dos primeiros sinais de que havia um novo movimento no crime organizado (apelidado de narcopentecostalismo) em curso no Rio foi em 2013, com o Bonde de Jesus. Sob a liderança de Fernando Gomes de Freitas, vulgo Fernandinho Guarabú, morto pela polícia em 2019, traficantes vandalizaram terreiros de candomblé e umbanda no Morro do Dendê. Pais e mães de santo, bem como outros sacerdotes de religiões de matriz africana, chegaram a ser expulsos —algo que continua ocorrendo nos dias de hoje no complexo. As guias religiosas, assim como as roupas brancas, foram proibidas. Este fenômeno se espalhou por várias comunidades comandadas pelo TCP, facção que se originou em 2002 de um racha do Terceiro Comando. Depois de Guarabú, parte da cúpula se converteu ao evangelismo neopentecostal, alguns enquanto cumpriam pena em presídios no Estado. O Rio de Janeiro é um bastião evangélico no Brasil, com 29,4% de sua população professando essa religião, segundo o mais recente censo, de 2010.
O inimigo do meu inimigo
A facção tem como principal inimigo o Comando Vermelho (CV), com quem disputa territórios em vários pontos da cidade do Rio de Janeiro. Parte do complexo, inclusive, era dominado pelo CV e foi tomada à força. O grande trunfo do TCP para garantir sua expansão e conseguir fazer frente ao rival mais numeroso é um aliado com quem tem relações ainda incipientes, mas promissoras: grupos milicianos.
Em dezembro de 2020, três policiais militares foram presos suspeitos de envolvimento com o grupo de Peixão. As investigações apontam que os traficantes e o milicianos, gangues de ex-policiais e policiais que passaram para o lado do crime organizado, entraram em acordo em uma das favelas na região do Complexo de Israel. O TCP controla o comércio de drogas, e os milicianos se encarregam de explorar gato-net, abastecimento de gás com sobrepreço e cobrança de taxas do comércio, atividades clássicas destes grupos. Mas esta situação ainda não está completamente pacificada, uma vez que alguns policiais que integram a milícia local são contrários à aliança com traficantes. De qualquer forma, ambos têm o mesmo inimigo: o CV, que apesar de ter perdido território nos últimos anos continua sendo a maior facção fluminense e uma força a ser enfrentada na luta pela hegemonia do crime organizado no Rio.
As milícias cariocas já controlam 25,5% dos bairros do Rio de Janeiro, em um total de 57,5% do território da cidade. As três principais facções criminosas do tráfico de drogas —Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos— possuem juntas o domínio de outros 34,2% dos bairros e 15,4% do território. Ao todo, 3,7 milhões de pessoas vivem em local controlado por algum grupo criminoso, ou o equivalente a 57,1% da população da capital, segundo dados de uma pesquisa de várias organizações com dados de 2019.
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