sexta-feira, 3 de junho de 2022

A SOMBRA DE SI MESMO

 


Examinar a vida psíquica de alguém sem dispor de sua própria palavra em contexto é uma tarefa aproximativa, limitada aqui ao material compilado pela biografia de Bolsonaro, escrita por Clóvis Saint-Clair, e pelo arrazoado de declarações que constam na denúncia movida pelo Ministério Público contra Jair Bolsonaro por discurso de ódio.

Nascido em uma família extensa e pobre, Jair Messias Bolsonaro teve seu primeiro encontro com o universo militar no Vale do Ribeira, em São Paulo, quando tinha 14 anos. As tropas do general Médici fizeram uma operação para aprisionar o capitão Carlos Lamarca. Amante de Iara Iavelberg, assassinada na Bahia no ano seguinte, ele desertara do Exército para se engajar na guerrilha comunista. Para espanto e admiração do jovem Bolsonaro, Lamarca conseguiu escapar ao cerco. Ocasião em que recebeu, de um dos soldados, o convite para ingressar na educação militar.

Observemos que a gênese do espírito de caça aos comunistas é simultânea à potencial admiração pelo capitão desertor. Concomitantemente, o pai de Bolsonaro vive grande vergonha, ao ser denunciado, talvez por motivos políticos, por prática ilícita da profissão de dentista. Um pai humilhado e perseguido geralmente deixa como rastro desejos persistentes de vingança. Esse padrão de ambiguidade na relação com a lei atravessará a trajetória de Bolsonaro, fazendo com que ele combine enunciados de ordem e obediência aos bons costumes com a enunciação de desrespeito e agressividade contra aqueles que não se incluem em sua família.

Ao chegar a capitão da brigada de paraquedistas, Bolsonaro traiu seus superiores concedendo uma entrevista à revista Veja na qual denunciava o baixo soldo concedido aos militares. Depois ofendeu o general Leônidas Pires Gonçalves, chamando-o de racista e incompetente, quando estava sendo investigado por uma conspiração para colocar bombas na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, no estado do Rio de Janeiro. A ideia de criar confusão, para mostrar que os militares não tinham o comando de suas tropas, confirma a oscilação de sua relação com a autoridade, sugerindo que dentro do obediente e ambicioso capitão Bolsonaro remanesciam traços do rebelde comunista capitão Lamarca.

À medida que alguém se dá conta de como isso pode ser útil para a vida social, esse funcionamento duplo diante da autoridade costuma evoluir para uma progressiva dissociação instrumental entre o que se diz e o que se faz. Aos 33 anos, ciente de que seria expulso do Exército, Bolsonaro articulou sua candidatura a vereador, como uma espécie de fuga para a política. Usou as acusações contra si para captar votos entre seus antigos companheiros. A mesma lógica o levaria, após 27 anos de exercício político continuado, a propor-se como um candidato “antipolítico” e “antissistema”. Essa dissociação ajuda a entender por que a maior parte das pessoas tem uma atitude de relativa descrença diante do que ele diz, como se, pelo caráter pirotécnico e caricato, suas ameaças não pudessem ser tomadas a sério. Seu ódio aos comunistas e seu monólogo contra o Partido dos Trabalhadores são verdadeiros, porque externam valores que no íntimo o atormentam como uma sombra. Por outro lado, eles são falsos porque exteriorizam exageradamente sua fantasia infantil de rebeldia e o desejo de exceção. Quando criticado, ele inverte a pergunta reativamente, redirecionando-a aos erros e às iniquidades do PT — isso recupera sua identificação com Lamarca, Chávez e Lula. Como não reconhecer na luta por melhores salários a atitude sindicalista? Como não ver nas conspirações a tentação do terrorista? Como entender que em 1999 ele tenha declarado que “gostaria muito de que a filosofia (de Hugo Chávez) chegasse ao Brasil”, pois o venezuelano fez o que “os militares fizeram no Brasil em 1964”?

Todo político que se propõe a operar como substituto do pai, de quem temos medo e a quem nos submetemos em troca de proteção, terá de lidar com o efeito de ambivalência causado por esse lugar. Amor e ódio pelo pai convivem mal em Jair, assim como o pequeno capitão Bolsonaro amava e odiava o Exército, assim como ele obedecia e traía a seus superiores. Essa é uma forma de ser, ao mesmo tempo, paladino do antipetismo e super-herói revolucionário que fará a justiça com as próprias mãos. Ele facultará a todos o acesso à fantasia de pequenos Ches Guevaras, com armas em mãos defendendo sua pequena Cuba.

Nessa identificação alternante, o papel da religião é estratégico. O cristianismo, assim como outros elevados valores morais, tais como a anticorrupção, a proteção de mulheres e crianças, que habitualmente associamos com o amor, surge como discurso encobridor, necessário para justificar o culto da violência e da opressão, que nos faz odiar nossos inimigos. Um sinal de neutralização discursivo, como se alguém que fala em Cristo não pudesse realmente ser a favor da violência.

É pelo fato de o ódio a suas próprias tentações revolucionárias permanecer como uma sombra que seu discurso causa esse efeito de autenticidade. O ódio é verdadeiro, a externalidade do inimigo é falsa. É exatamente porque seu discurso é relativamente vazio, esquivo e repetitivo que ele se presta a ser incorporado por qualquer um que sinta uma revolta indeterminada semelhante. Os efeitos dessa identificação expansiva criam a realidade que ele precisa para confirmar a sinceridade de sua crença. Ele não é um mentiroso instrumental, que faz tudo para sustentar seu papel, mas alguém que acredita na mentira na qual se tornou para si mesmo. Isso é consistente com o personagem que grita, que perde a compostura, mas que é tolerado amigavelmente pelos que o cercam. Eles o adulam como a uma criança mimada, a quem concedemos privilégios especiais de fala e comportamento, mas que igualmente não levamos muito a sério. Mecanismo semelhante faz com que suas nove mudanças de partido, realizadas durante a carreira, não sejam percebidas como recorrente infidelidade fisiológica, mas como sinal de que ele está “acima” dos partidos.

As duas vozes de Bolsonaro se alternam entre a confirmação narcísica daqueles que lhe são assemelhados, em imagem e indignação, e a inversão odiosa para o “eles”, que também a ele se assemelham, mas como imagem invertida, conspiratória e traidora. Senão vejamos. Sua ascensão incorporou quatro filhos e uma esposa, confirmando a tradicional política de clãs, todavia isso não é vivido como uma vergonhosa contradição, mas como defesa do que é nosso: nossas terras feitas de nióbio, nosso país livre de estrangeiros, nossa família de homens brancos. É a defesa da série materna, do corpo purificado das mulheres “fraquejadas”, das crianças e dos indefesos. Do outro lado estão “eles”, os indígenas obstrutores, quilombolas indolentes, desempregados aproveitadores e, sobretudo, homossexuais. A divisão maltratada, no nível do sujeito, cria uma projeção, a partir da qual tudo que é intolerável e inadmissível é deslocado para o outro. Inversamente, o campo das identificações por semelhança precisa estar em contínua expansão para aumentar a idealização crescente de quem somos nós. Lembremos que o Vale do Ribeira, na infância de Bolsonaro, era uma região de extrema pobreza, com muito desemprego, além de uma população de indígenas e, coincidentemente, quilombos. Assim fica fácil perceber que Bolsonaro está às voltas com a negação de sua origem, com o apagamento de sua história, criando um grandioso mito familiar para compensar sua humilhação infantil.

A brutalidade dos modos, o gosto pelas imagens de tortura e a ostentação do poder pelas armas funcionam como uma espécie de exagero para encobrir a debilidade que a pessoa sente em relação a seus estudos que jamais chegaram ao nível universitário. Novamente, isso não é vivido com a humildade de quem reconhece seus limites e pode, portanto, orientar-se para aprender, mas com a arrogância defensiva, como na apologia do grafeno ou quando ele questiona um especialista sacando do bolso sua própria revista científica, a Seleções do Reader’s Digest. Mais uma vez sua deficiência, que seria óbvia em qualquer outra circunstância comparativa, torna-se a fonte de autoridade pessoal, para questionar professores, artistas, pensadores e demais especialistas. Mais uma vez sua fragilidade narcísica é compensada por uma identificação de massa. Por meio dela, todos que se sentem igualmente ignorantes e intimidados pelos saberes reconhecidos como autoridade impessoal sentem-se vingados pelo desprezo que Bolsonaro nutre pelos intelectuais.

Vimos até aqui como a insegurança básica de Cavalão, como foi apelidado por seus colegas de Exército, o conduz para a elevação e alternância calculada da agressividade, bem como à criação de inimigos necessários para compensar incertezas de origem. Criado durante a ditadura, sem aulas de história propriamente dita, sua geração acompanhou a chegada da aids. Ele preocupava-se que militares não detectados como homossexuais poderiam criar problemas à noite, quando comprimidos em barracas apertadas. Filhos gays deveriam estar mortos. Por declarações desse tipo, Jair Bolsonaro foi condenado em primeira instância em abril de 2015 e em segunda instância em novembro de 2017. A lista de contravenções seria longa aqui, incluindo o “Não te estupro porque você não merece” e a crítica do kit gay (inexistente, afinal). A ostentação exagerada da masculinidade é compatível, nesse caso, com o “fraquejamento” inconsciente de sua virilidade. Nesse ponto, sua atitude desafia os críticos de outra maneira. Enquanto todos estão a denunciar sua homofobia como um crime, ele a instrumentaliza orgulhosamente, tornando-se o fiel representante de uma excepcionalidade. A criança que denuncia que o rei está nu. Agindo como se “todos nós” nutríssemos pensamentos contra gays, ele insinua-se como o herói, que desafia a lei e tem coragem de colocar às claras nossa hipocrisia.

*Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP

 

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