Em um dos seus contos, Machado de Assis escreveu a célebre frase: “Está morto: podemos elogiá-lo à vontade”.
A ironia machadiana, reveladora de facetas não tão belas da natureza humana, não se aplica, porém, ao caso de meu pai.
Em vida, Jorge Portugal recebeu muitas homenagens, comendas, expressões de gratidão e amor. Da ONU, na Itália, na Áustria, do Fantástico, da Assembleia Legislativa da Bahia, da Câmara Municipal de Salvador, dos amigos, dos fãs e dos alunos, sobretudo dos seus alunos, aqueles em quem mais fundou tocou. Todas elas, a bem da verdade, devidas também à sua companheira de vida, minha mãe, Rita Vieira.
Das funções que Jorge exerceu, sempre com genialidade e maestria, me refiro ao compositor imenso, ao comunicador perfeito, ao escritor maravilhoso, ao criador de projetos educativos que revolucionaram a vida de tanta gente, aquela ocupação com a qual ele mais se identificava, entretanto, era a de professor.
E assim era reconhecido por onde andava, recebendo de volta, sobretudo das pessoas mais simples, o sorriso largo e o olhar brilhante com os quais iluminou a Bahia: “Olha o professor!”, “O professor do Aprovado!”, “Valeu, professor!”.
Jamais um professor, profissão tão nobre quanto desvalorizada, foi admirado com tanta grandeza e profundidade em nosso estado.
Acrescente-se que estamos falando de um homem negro. No estado mais negro e na cidade mais negra do Brasil. E talvez por isso, o estado e a cidade mais racistas também.
E é a morte deste homem, Antônio Jorge Portugal, natural com todo orgulho da Leal e Benemérita Santo Amaro da Purificação, é a morte deste extraordinário homem negro que hoje completa 2 anos em branco.
Nenhuma escola, rua, praça, teatro, nenhum equipamento público, na Bahia, homenageia a figura humana de Jorge Portugal, desde que ele morreu - a não ser uma biblioteca em Camaçari, nomeada com seu nome quando ele estava vivo.
Particularmente, eu não preciso de homenagens para ter plena consciência da importância do meu pai para a educação, a cultura e a identidade deste estado.
Mas eu sei que ele gostava de homenagem, como bom leonino, que faria 66 anos neste 5 de agosto. E eu sei que é inspirador para as gerações que vivem e que viverão tê-lo como uma referência devidamente bem tratada.
A memória da Bahia merece.
Não me espanta, todavia, que assim (ainda) não o seja. Meu pai ajudou a construir o PT. Se candidatou a deputado estadual na fase heroica do partido. Compôs jingles gratuitamente para companheiros. Apresentou comícios de Lula. Articulou vitórias de aliados.
Mas nunca foi tão respeitado como quando apresentou o Aprovado!, o programa de educação, líder absoluto de audiência, recordista do Ibope com milhões de expectadores ligados às 8h e aos sábados, nos 15 anos em que foi ao ar na Rede Bahia, de ACM. Foi no Aprovado!, inclusive, onde Jorge gozou de total liberdade de expressão, que Jaques Wagner deu sua primeira entrevista como governador do estado e com ACM ainda vivo.
Com o PT, onde meu pai fez preciosas amizades, ele chegou a Secretário de Cultura da Bahia – uma secretaria que costumava existir e ainda existe. Foi o último sopro de vitalidade da Secult: editais com recursos próprios significativos, difusão das feiras literárias (das quais a Flipelô se destaca), Concha Negra, publicização da OSBA, inclusão de entidades e linguagens negras na política cultural e a semente do grande projeto que ele não conseguiu realizar e que tive a honra de ajudar a formatar, conforme o conteúdo programático que segue.
As Escolas Culturais serão (sim, serão) escolas profissionalizantes de tempo integral, especializadas na formação de competências no campo da cultura, como músicos, artistas visuais, restauradores, atores, roteiristas, editores, diretores de audiovisual, designers e programadores, e que, ao mesmo tempo, se abrirão como o equipamento cultural central para muitas comunidades de bairros periféricos e municípios pobres a encontrar nestas escolas o seu cineteatro, a sua biblioteca, o seu estúdio de som e vídeo e o seu infocentro públicos.
Meu pai não conseguiu realizar seu sonho de ampliar o alcance da educação e da cultura de excelência nesta dimensão para jovens, mulheres e homens baianos, através das Escolas Culturais e de muitos outros projetos, porque a mesquinhez, a mediocridade e a força de certas transações prevaleceram sobre a generosidade de suas ideias e o sobre o compromisso com a Política com P maiúsculo.
Tudo se passou com o consentimento do governador Rui Costa e a condução do deputado estadual Rosemberg Pinto, que, como todos sabem, mas ninguém diz, manda na Secult - e a quem meu pai ajudou a se eleger.
E como Jorge não era dessas figuras negras que se rastejam, impotentes, aos senhores racistas, para preservar um cargo: preferiu sair. Talvez sua maior heresia foi ter sido um intelectual e gênio negro antirracista que olha os brancos de igual para igual, com altivez e irreverência.
O professor se deprimiu, sensível como era. Depressão essa que foi agudizada pelo isolamento da pandemia, durante a qual o acompanhei até o fim. E pelos atrasos torturantes dos pagamentos que lhe eram devidos pelo IRDEB de Flávio Gonçalves e pela Secretaria de Educação de Jerônimo Rodrigues, em função dos últimos serviços prestados ao governo do estado, quando já não era secretário.
Meu pai, que nunca se preocupou em acumular bens materiais, sustentou diversos amigos e ajudou inúmeras pessoas, muitas vezes sacrificando futilidades da própria família, terminou seus dias com severas dificuldades financeiras, sem dinheiro para pagar nem o seu plano de saúde, motivo pelo qual veio a falecer no Hospital Geral Roberto Santos, muito bem atendido por enfermeiras e médicos que foram seus alunos de língua portuguesa, redação ou literatura.
Em 2020, fui candidato a vereador de Salvador pelo meu PDT e não quis misturar um depoimento de justiça histórica com campanha eleitoral. Desta vez, não sou candidato a nada. E me sentia incomodado por não compartilhar este relato. Aqui está.
Não odeio nem tenho mágoa de ninguém. Não guardo sentimentos que envenenem meu coração e minha mente. Não resolvem nada. Adoecem. Atrapalham a percepção e as ações. E acredito, em boa medida, que o mal por si se destrói.
Mas o amor que cultivo, o amor cristão da empatia, da solidariedade, do perdão e da humanidade mais elevada, a mais propriamente humana, é também o amor à coragem de dizer a verdade e lutar por justiça, como Xangô!
“Eu sou o sol da Jamaica/ Sou a cor da Bahia/ Sou você, sou você, sou você/ E você não sabia”, escreveu o poeta Jorge Portugal na letra de Alegria da Cidade, um hino negro deste estado.
Portanto, não adianta tentar apagar a memória deste grande homem porque ela seguirá como estrela luminosa brilhando em muitos e muitos corações.
Afinal, como ele também escreveu em A Beira e o Mar, obra-prima composta com seu grande parceiro, Roberto Mendes, e gravada por sua maior intérprete, Maria Bethânia, se referindo aos malditos de quem não nos lembraríamos nem que tivessem seus nomes nas placas de todas as ruas:
Mesmo que desamanheça
E o mundo possa parar
E nem nada mais se pareça
Invento outro lugar
Faço subir à cabeça
O meu poder de sonhar
Faço que a mão obedeça
O que o coração mandar
Mesmo que inda que tarde
Não tarde por esperar
Dou um nó cego em seu remelexo
E o deixo sem ar
Rodo a baiana ligeiro
Faço este mundo girar
Mas estarei sempre inteiro
Se você despedaçar
Você será sempre a beira
E eu, toda a água do mar
Mesmo que você não queira
Eu quero e assim será
No fim dessa brincadeira
Quando a poeira assentar
Solto o nó do remelexo
E deixo você dançar
VIVA JORGE PORTUGAL!
Caetano Portugal
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