Em 1948
eu tinha 12 anos. A segunda guerra mundial ainda estava presente, mesmo
em Marrocos, nos medos e na mesa. Não havia muito, minha avó ainda
procurava misteriosas plantas nos campos para inventar uma sopa.
Faltava
comida, faltavam remédios...
Ter uma
bicicleta era meu sonho louco de pequeno estudante.
Não que
realmente precisasse. O colégio ficava a quinze minutos a pé de casa e Rabat, a pequena cidade onde nascera, ainda me
parecia imensa, cheia
de armadilhas e perigos á espera das crianças.
Mas
quem tem bicicleta é rei.
Pedalar
devagar, sem aparentar esforço, usar o freio como por acaso, com
desenvoltura, dirigir com uma mão ou só por equilíbrio, de repente, com
meia dúzia de pedaladas, voar para a outra ponta da rua, para os mais experimentados
dirigir de costas, sentado no guidom, e quando a noite chegar, ligar o farol, ouvir seu ronrom e ver o mundo
resumido a um hesitante facho de luz
rasgando a obscuridão....
Mas lá
em casa, o dinheiro era curto e minha avó tinha outras prioridades.
O tio
Boris vivia em outra cidade, Agadir, perto do deserto do Saara. Era o
ricaço da família. Seu bigode longo, esguio e aloirado cheirava a cigarro
esfriado. Falava alto e com grande autoridade. Muito usava deste poder.
Exigia
respeito.
Chegava
de imprevisto no seu carro reversível e barulhento. Quem tinha ou
sabia usar um telefone naqueles tempos, na primeira metade do século XX? Havia
sempre presentes no porta-malas. Tínhamos que agradecer repetidas vezes.
Passava
umas horas, uma noite, e seguia para o norte, até Tanger. A casa
iria permanecer agitada por vários dias.
Mas uma
visita ficara especialmente gravada na minha memória. O
costumeiro buzinaço levou mais uma vez toda a vizinhança á janela. Correndo
até a varanda, vi lá de cima, no porta-malas do carro, um imenso embrulho que só podia esconder uma bicicleta!
Não
acreditava! Uma bicicleta!
Desci a
escadaria aos pulos e sem mesmo saudar o tio, rasguei o papelão. Acreditem
se puder: ao ver a bicicleta reluzente, tive uma reação de rejeição: ela era
vermelha e eu sempre sonhara com uma bicicleta azul. Vermelho
escuro, já velho, pesado, sinistro, em vez de azul leve como o céu, como a
adolescência...
Nenhum
dos meus amigos tinha uma bicicleta vermelha. Não fazia parte de nossas
referências estéticas de crianças. Meu entusiasmo tinha desaparecido.
Odiava
meu tio, a bicicleta, chorava as expectativas frustradas.
Vermelha!
Como o tio Boris podia ter escolhido cor tão abominável?!...
Traduzindo
como emoção meu mutismo, o homem fazia o elogio do presente, ficava
ele mesmo vermelho de auto-satisfação, mostrando cada detalhe, e a
cada qualidade realçada, minha raiva crescia...
Claro
que acabei me acostumando com o engenho. Subi com grandes esforços muitas
ladeiras e escorreguei inebriado as mesmas tal qual um corredor de fórmula 1.
Mas
ainda hoje, mais de meio século passado, ainda persiste o gostinho amargo da
desilusão exacerbada por ter recebido uma bicicleta vermelha.
Dimitri
Ganzelevitch Salvador, 10 de Novembro de 2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário