sábado, 27 de junho de 2020

A DIREITA E OS CORVOS

ESCUTA.




Jorge Chaloub*
Os últimos dias foram marcados por sinais de moderação do governo Bolsonaro. Depois de semanas com frequentes ameaças de golpe, seja por parte do presidente ou do núcleo duro bolsonarista, o silêncio substituiu as bravatas. A coincidência entre a nova postura do presidente e a prisão de Fabrício Queiroz sugere uma relação entre os fatos e aponta para prováveis revelações danosas. O objeto desse pequeno texto não é, todavia, a cumplicidade entre a família Bolsonaro e membros das milícias carioca, mas a resposta das instituições e atores da oposição à direita a essa “nova fase” do Governo Bolsonaro.
Desde o momento quando despontou como um candidato competitivo, a postura predominante da mídia, da direita moderada, do Judiciário e mesmo de alguns atores progressistas foi a minimização da ameaça bolsonarista. Contra a retórica da histriônica do ex-militar, o olhar indulgente de muitos, que retratavam os crimes de Bolsonaro, como a apologia à tortura, como impulsos de um coração puro. Da recusa a enquadrá-lo como pertencente à extrema-direita às falsas equivalências[1] com o moderado governo petista, não faltaram estratagemas para reduzir a ameaça à democracia representada pelo Presidente.
A conduta genocida em meio à pandemia e as ameaças explícitas às instituições pareciam ter finalmente convencido uma parte importante da mídia e da direita tradicional da ameaça bolsonarista. Os esboços mal ajambrados de frente ampla sugeriam um cenário mais próximo, afinal, de um consenso sobre a profunda ameaça que figuras de clara inspiração fascista, como o atual presidente e vários dos seus apoiadores, representavam para qualquer ordem democrática. O silêncio de Bolsonaro e alguns tímidos movimentos de acomodação, como a mudança no Ministério da Educação e o envio de sinais de armistício ao STF, parecem, todavia, ter apagado todo o passado recente, legado ao esquecimento os milhares de mortos de uma política criminosa e as abertas pregações golpistas. A última semana registrou vários movimentos nesse sentido, que vão desde notas na imprensa claramente vazadas por alguns Ministros do STF até um a postura mais moderada, repleta das comparações de sempre com o PT, dos dublês de analistas políticos da GloboNews.
O movimento deixa cada vez mais claro como o interesse de parte de nossas elites política em reformas neoliberais e ultraliberais, já iniciadas com a votação do novo marco regulatório do saneamento no Brasil, – tema, aliás, de ótimo texto recente de João Dulci nessa mesma revista[2] –  é maior do que a preocupação com o futuro das instituições de 1988. O Governo Bolsonaro funciona como garantidor do receituário ultraliberal na economia, ao garantir a exclusão da esquerda de qualquer posição de destaque na cena política. Se despontam no mundo todo fortes críticas, à direita e à esquerda, ao neoliberalismo, o debate público brasileiro consagra uma versão particularmente extremada de tal receituário e continua a tratar qualquer ideia de ingerência estatal como quase sinônimo de corrupção. Nada mais sintomático do que a tosca divisão, de grande sucesso na grande mídia, entre ministros “ideológicos” e “técnicos” do Governo, com curiosa escalação do radical ultraliberal Paulo Guedes e dos militares saudosos do regime de 1964 no segundo grupo. A conduta antecede mesmo a suposta “moderação” do bolsonarismo, como bem exemplifica entrevista de Bruno Araújo[3], presidente do PSDB, no dia 12 de junho, quando o mesmo defensor entusiasta da deposição à qualquer custo de Dilma Rousseff passa a temer as eventuais consequências institucionais do afastamento de um Presidente que comete tantos crimes de responsabilidade quanto respira. Ao fim e ao cabo é a economia que importa e não se deve arriscar a normalidade das trocas por coisas tão comezinhas como ameaças de golpe ou milhares de mortos por uma política de saúde contrária a saúde pública. Enquanto isso, parte da esquerda, que merecerá outro texto futuro, perde a oportunidade de ganhar maior protagonismo no movimento de resistência democrática e se perde em uma composição entre sectarismo, ressentimentos e cálculos equivocados, compondo esse cenário de desalento onde nos encontramos.
Um velho provérbio espanhol afirma: “crie corvos e eles te arrancarão os olhos”. Desde 2014, a direita brasileira, a mídia e o sistema de justiça têm se dedicado com afinco a alimentar seus corvos. De maior partido de oposição, o PSDB se transformou no quintal do medíocre Dória, a poderosa Rede Globo recebeu ataques inéditos e o Judiciário foi tratado como nos tempos da Ditadura Militar, tudo isso em troca da desejada exclusão da esquerda e da “modernização liberal” do Estado brasileiro. Crente de que pode se livrar dos corvos a qualquer momento, esses atores criam um cenário muito semelhante, com todos os limites desse tipo de analogia histórica, ao da emergência de alternativas fascistas: com a exclusão da esquerda da cena política através da construção de inimigos públicos internos, a tolerância ante a violência pública, por meio de discursos e milícias armadas, e a naturalização de discurso anti-intelectuais e antidemocráticos, dentre outros aspectos. Enquanto isso os corvos, mesmo silenciosos, afiam suas garras. Não creio que eles se balizem por calendários eleitorais.
*Jorge Chaloub é um dos editores da Escuta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário