TORTO-ARADO ARREBATA O PRÊMIO JABUTI DE ROMANCE
O romance Torto-Arado, do baiano Itamar Vieira Júnior já é conhecido dos portugueses, pois teve a sua primeira edição publicada aqui, ao vencer o Prêmio Leya de Literatura de 2018.
Agora, após uma edição brasileira pela Editora Todavia, o livro arrebata o mais prestigioso prêmio literário do Brasil, desbancando autores de peso como Chico Buarque de Holanda, considerado favorito com Essa Gente, e Paulo Scott, Maria Valéria Rezende e Adriana Lisboa, também fortes concorrentes.
O romance tocou fundo a sensibilidade dos leitores pela sua história originalíssima e comovente, passada num cenário marcante da ruralidade brasileira.
Sobressai-se por sua denúncia contundente de uma realidade que resiste a todas as forças de mudança no país do latifúndio e da servidão rural, que carrega a mácula de jamais ter conseguido resolver a sua injusta, violenta e desumana estrutura fundiária.
Verdadeira alegoria sertaneja, Torto-Arado começa com um episódio insólito. Duas irmãs pré-adolescentes, moradoras na roça, disputam inocentemente uma faca e se ferem na língua.
Socorridas em um hospital da cidade mais próxima, têm as feridas suturadas. Belonísia, a mais nova, recebe curativos e antibióticos, conseguindo uma rápida recuperação, enquanto que Bibiana, um ano mais velha, não tem a mesma sorte: com a língua decepada e a impossibilidade de um reimplante, ficará sem este órgão pelo resto da vida; perderá a fala e conviverá com sérias dificuldades de deglutir.
Com empunhadura de marfim e uma lâmina afiada como uma navalha, a faca da disputa jogará um papel crucial em toda a narrativa.
Como se verá, trata-se de uma faca encantada, que guarda múltiplos segredos.
A partir daí, desenvolve-se uma rica história de lutas, resistência, superação, derrotas, tragédias e vitórias. A provedora primordial de toda a humanidade se converte num palco sangrento.
Aliás, desde que Euclides da Cunha publicou Os Sertões que o romance rural brasileiro se enquadra numa fórmula da qual, por mais que se queira, não é possível escapar. Ela é tributária do próprio sistema fundiário brasileiro, altamente concentrado, desde suas origens até os dias de hoje, nas mãos de uma minoria de latifundiários.
O Brasil tem o triste privilégio de ser um dos poucos países do mundo civilizado que não passou pelo crivo de uma reforma agrária, que distribuísse a terra entre os que nela trabalham e vivem.
Daí porque a luta pela posse da terra sempre foi e continua sendo o fenômeno mais frequente e sangrento de sua história. Decorre disso uma formatação romanesca que se repete na obra dos mais diversos autores que se dedicaram a escrever histórias rurais: Jorge Amado, Herberto Sales, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Guimarães Rosa e tantos outros.
Cada romance é uma recriação em espelho da trilogia sociológica euclidiana: “a terra, o homem, a luta”. E Torto-Arado não foge à regra.
A terra em questão é a Chapada Diamantina da Bahia e seus entornos, região rica de águas e pedras preciosas, com alguns trechos de cerrado e outros de catinga, começo do vasto território sertanejo da Bahia e dos estados nordestinos limítrofes.
Abundante de rios, colinas altaneiras, montanhas e chapadas, essa região concentra uma população que cresceu movida em boa parte pela cobiça da riqueza fácil que a busca do diamante proporciona, assim como pelas oportunidades de trabalho e subsistência para o povo pobre e desvalido.
A malha social, por sua vez, é constituída principalmente de descendentes de escravos negros despejados ao deus-dará no imenso interior do país após o fim oficial da escravatura.
São famílias que se fixaram desde épocas remotas e foram se misturando com remanescentes de outras categorias raciais: brancos empobrecidos, pardos, mamelucos e indígenas. A predominância, no entanto, é de gente originária das comunidades quilombolas.
Assim é que os personagens principais do romance são todos negros. No caso específico, são trabalhadores da fazenda Água Negra, de propriedade de uma tradicional família de fazendeiros conhecida como “os Peixoto”.
Explorada de toda sorte, essa população pobre procura garantir um meio de sobrevivência: isso significa um trabalho, mesmo que extremamente duro, e uma moradia, mesmo que precária. Os contratados têm permissão para construir uma casa, desde que não seja de alvenaria e coberta de telhas. Tem de ser a chamada casa de taipa, com telhado de palha, configurando um simples alojamento e jamais uma propriedade.
São-lhes concedidos tão somente pequenos pedaços de terra, no fundo das casas, para cultivarem as plantas desejadas, desde que metade da produção seja entregue ao fazendeiro, através de seu capataz, sempre atento, rigoroso e atrabiliário.
Mas este cultivo pessoal só é permitido nas horas vagas. Fora disso os empregados são obrigados a trabalhar de sol a sol para os proprietários. Somente as crianças e os idosos podem se ocupar a qualquer hora dos seus quintais.
O cumprimento das regras é condição imprescindível para a permanência na fazenda. Quem as descumpre é mandado embora. A princípio, as pessoas são pacíficas, e superam suas dificuldades através de uma vida solidária, que se traduz como forma de resistência.
Mas o ódio aos exploradores vai se acumulando dia a dia, e gera as suas consequências naturais. Quando as contradições de classe se aprofundam, também se encarregam de criar um palco de lutas e acender um prenúncio de liberdade.
A história gira em torno da família de Zeca Chapéu Grande, pai de Bibiana, Belonísia, Zezé e Domingas. Zeca é casado com Salustiana Nicolau, vulgo Salu, e é filho de Donana, a dona da faca do acidente, que a guarda como uma dádiva, enrolada em trapos dentro de uma velha mala de sola, debaixo da cama.
Zeca Chapéu Grande é um “curador”, responsável pelas festas de jarê na propriedade. Tais festas, alegria das famílias ali assentadas, são toleradas pelo proprietário da fazenda, que acredita, por experiência própria, nos poderes mágicos de Zeca Chapéu Grande na manipulação de plantas, ervas e raízes, ao som dos atabaques e rezas, que curam como um medicamento milagroso.
Não sabe ele que são exatamente essas festas do jarê que alimentam o espírito de sobrevivência e resistência do povo, através da crença nos “encantados”; quando as injustiças eclodem, é o jarê que engendra a força necessária e a percepção das causas dos acontecimentos adversos, convertendo-a em ecos de revolta.
As festas religiosas do jarê, de raízes africanas, acabam, assim, sendo uma autêntica forma de resistência. Típica da Chapada Diamantina, não representam apenas um atributo de fé, mas também de divertimento, uma vez que os cultos são verdadeiras festas, no sentido lato: exaltação de prazeres sensoriais, de comidas típicas, bebida, música e dança.
Além disso, é o jarê que alimenta a crença nos poderes da natureza, mais ou menos semelhantes aos do candomblé da Bahia. Os deuses do jarê parecem ser ainda mais poderosos: são eles que movimentam os “encantados”, com suas forças misteriosas.
Não só os elementos da natureza têm seus símbolos de “encantamento”, tal a água e o fogo, como as próprias pessoas podem se tornar “encantadas”. Quando um “encantado” morre, alguém tomará o seu lugar.
Aqui precisamos retornar ao início deste artigo. A faca que decepa a língua de Brelonísia é, como vimos, uma “faca encantada”, que cumprirá um destino de justiça, como elemento crucial da luta pela posse da terra. Donana, quando jovem, é fascinada pela sua beleza, ao vê-la embainhada e presa no cinto de uma calça, pendurada num arame no quintal da fazenda onde trabalha como doméstica, numa festa de patrões.
O cabo de marfim é tão deslumbrante e a lâmina tão brilhante que prenunciam um poder sobrenatural. Seduzida, ela não consegue deter o ímpeto de se apossar dela, escondendo-a em local secreto.
De nada adianta a incessante procura do instrumento desaparecido pelos ricos fazendeiros, pois ninguém desconfia dela, tida como de confiança, pois ali já trabalha há vários anos.
Tempos depois, já afastada dali e amasiada com um homem de má índole, Donana encontra o primeiro motivo para usar a faca: quando seu parceiro persegue a sua filha, tentando estuprá-la, ela não vê outra saída senão se vingar dele.
Cria um plano bem urdido e mata o companheiro com a faca, enterrando o corpo em local secreto. O crime nunca será descoberto.
O segundo incidente é o que se dá com Bibiana e Belonísia. Salu, a mãe delas, que também é curadora, sabe que este incidente não se dá por acaso. Imagina que as filhas “haviam se mutilado num ritual misterioso que, nas suas crenças, precisaria de muita imaginação para explicar”.
Quem sabe o incidente não represente o castigo pelo roubo da faca? Quem sabe não tenha sido necessário para dar à faca a trajetória que lhe foi predeterminada?
Depois do incidente com as netas, Donana se apossa novamente da faca e a enterra em lugar secreto, na beira do rio Bonito. Belonísia vai reencontrá-la por acaso, tempos adiante, ao avistar seu cabo de marfim despontando brilhante do seio da terra.
Já nesse momento se vale dela para defender-se da ameaça de um cavaleiro que se acerca, como se a faca tivesse surgido milagrosamente para salvá-la. É ela mesma quem narra: “Ao retirar o punhal da minha avó do chão seco percebi que sangrava, e um rio vermelho começou a correr pela terra”.
A faca é guardada em sua casa como um amuleto. Mesmo vivendo só ─ seu marido, um bêbado malfeitor, havia morrido numa queda de cavalo ─, sente que nada pode lhe acontecer de mal desde que esteja perto dela.
Por esse tempo, torna-se amiga de uma nova moradora da fazenda, nas confluências de sua casa, de nome Maria Cabocla, uma preta baixa e robusta, que carrega o infortúnio de apanhar com frequência do marido. Cheia de filhos, a vida de Maria é um verdadeiro inferno e Belonísia resolve apoiá-la e enfrentar aquele homem mal que não lhe dá sossego.
Muitas vezes acolhe Maria em sua casa. Em outras toma a frente dela e impede as agressões do malfeitor. Vários são os entrechoques. No mais comovente e decisivo, ela empunha a faca encantada e a põe na garganta do homem, que fica assombrado com a sua coragem e não consegue olhar para a faca: recua e chora.
Por último, ocorre o episódio chave do romance.
Bibiana traça um plano para liquidar o novo proprietário da fazenda Água Negra, que já não pertence aos Peixoto. É um violento perseguidor dos moradores, responsável, inclusive, pelo assassinato de Severo, primo e marido dela, que havia entrado para o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de uma cidade próxima, onde vivera uns tempos e, de volta à fazenda, dera início a um trabalho de organização e conscientização dos trabalhadores.
Bibiana apossa-se da faca encantada guardada por Belonísia e, durante várias noites, sem que ninguém perceba, dirige-se a um local onde o novo proprietário costuma passar de cavalo, supervisionando suas terras. Ali cava uma cova profunda e a recobre com palhas e mato rasteiro. No dia certo, escondida entre os arbustos, salta sobre o cavalo e crava a faca no inimigo. Depois arrasta o cadáver até a cova que preparou e o recobre de terra e mato.
Após sua vingança, tudo começa a mudar na fazenda. O direito de construir casas de alvenaria é conquistado. A propriedade individual para cultivo próprio é expandida e não mais sofrerá tributação injusta. A emancipação dos trabalhadores vai sendo conquistada passo a passo.
Por isso, se o título deste livro parece, a princípio, destoante, nesse final é possível vê-lo como um sinal dos tempos. O torto arado é o símbolo de uma lavoura alienada e atrasada, que só funciona na base da força bruta e com o sacrifício de muitos em benefício de poucos.
Um dia será diferente, tecnologicamente avançada e manejada por homens livres em seu próprio benefício.
─ oOo ─
Torto Arado é dividido em três partes: Fio de corte, narrado por Bibiana; Torto arado, narrado por Belonísia; e Rio de sangue, narrado por Santa Rita Pescadeira, uma “encantada” que se incorpora em Miúda, outra heroína da comunidade de Água Negra.
O fato de os narradores serem todos eles mulheres é paradigmático. Tal protagonismo é uma das facetas encantadoras do romance, que ressalta o papel das mulheres e enaltece a sua bravura.
Toda a história é um chamamento de amor à terra; um grito poético que pode ser resumido nesta narrativa de Bibiana, a respeito do que lhe ensinava Zeca Chapéu Grande, seu pai:
“Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta não tem vida.”
E, ressaltando a sabedoria do pai:
“Meu pai não tinha letra, nem matemática, mas conhecia as fases da lua. Sabia que na lua cheia se planta quase tudo; que mandioca, banana e frutas gostam de plantio na lua nova; que na lua minguante não se planta nada, só se faz capina e coivara.”
Por fim, falando de quando seu pai encontrava um problema na roça:
“…se deitava sobre a terra com o olvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar.
Como um médico, à procura do coração.”
A última narradora assim chega ao desfecho dessa história: “Sobre a terra há de viver sempre o mais forte”. Perfeito! Como dizia Euclides da Cunha, “o nordestino é antes de tudo um forte”.
Em resumo: Torto arado é um romance sólido, dos mais bem escritos nos últimos tempos no Brasil.
Engrandece a literatura de língua portuguesa e recoloca a Bahia na trilha percorrida pelos seus grandes mestres.
Paulo Martins – Lisboa, novembro de 2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário