Cineasta Bernard Attal fala sobre o documentário “Sem Descanso”
entrevista por João Paulo Barreto
Em 02 de agosto de 2014, Geovane Mascarenhas de Santana, de 22 anos, foi abordado por uma viatura policial enquanto pilotava sua moto no bairro da Calçada, em Salvador. Rendido, mão na cabeça, de costas para um deles, já foi covardemente agredido fisicamente pelo primeiro policial que se aproximou. Colocado em seguida de joelhos, foi revistado e teve seus documentos verificados. Após longos minutos, foi colocado na viatura, enquanto um dos oficiais pilotava sua moto. Toda a ação à luz do dia, em um dos locais de maior movimento da capital baiana, passou como rotineira pelos transeuntes e motoristas. A certeza da impunidade diante de mais um ato de truculência e abuso de poder era certa para aqueles homens fardados diante de mais um jovem negro. Porém, uma câmera estava lá para registrar a última vez que Geovane foi visto com vida.
22 dias depois, o corpo do jovem seria sepultado na cidade de Serra Preta, interior do estado. O intervalo de tempo entre a gravação daquele vídeo no qual Geovane encontrara seus juízes e carrascos, junto a uma reflexão urgente e um anseio de mudança quanto a barbárie da violência policial, é o que propõe apresentar “Sem Descanso” (2020), documentário do cineasta Bernard Attal, que narra a busca angustiante de Jurandy, pai de Geovane, pelo seu filho durante as duas semanas que se seguiram à abordagem no bairro da Calçada. Jurandy passou por delegacias, batalhões, hospitais, instituto médico legal, e, como o próprio nome do filme diz, não descansou até ter notícias de seu filho. A confirmação do assassinato surgiu após partes do corpo decapitado de Geovane terem sido encontradas em dois pontos distintos do subúrbio de Salvador, em uma tentativa covarde e monstruosa de acobertar as atrocidades cometidas dentro do batalhão da polícia, um órgão do Estado que deveria proteger sua população, mas a assassina abusando do poder que esse mesmo omisso Estado lhe concede.
“Várias vezes tentamos conversar com o governo, com os órgãos públicos e com a corregedoria da polícia. Chegamos até a marcar encontros, mas eles desistiam de última hora ou negavam esse encontro. Realmente, é uma pena porque eu não queria fazer um filme contra a polícia”, explica Bernard Attal acerca das motivações de investigar para o documentário o caso Geovane. Porém, o cineasta deixa claro que a busca pelo diálogo foi primordial na construção de seu filme. É o diálogo que impede a barbárie. É o diálogo que fortalece democracias e impede a ascensão de uma violência fascista oriunda daqueles que deveriam proteger, mas ameaçam a sociedade. “A violência policial é uma tragédia da sociedade toda. A sociedade toda é responsável. Tanto a Polícia, quanto o Estado, quanto a Justiça, quanto nós, como cidadãos, somos responsáveis. Eu não queria apontar especialmente a polícia nesse caso. Eu queria conversar com as autoridades públicas para entender se eles iam tomar providências para reduzir esses casos. E eles se negaram completamente ao diálogo. Isso foi realmente uma pena porque achei que seria uma dimensão do filme que eu teria gostado de ter, mas, no final, não temos. A postura desse governo é de simplesmente não tratar o problema da violência policial”, afirma Bernard.
Com seu assassinato, Geovane deixou para trás mulher e filha, pessoas que foram privadas do convívio com ele. Deixou para trás avós e amigos. Deixou para trás seu pai, Jurandy, que não descansou até o momento em que pôde perceber, vendo o caixão do seu filho, a dimensão da tragédia que sua vida teve. Esse descanso, aliás, nunca virá. Como “Antígona” (442 a.C), da obra de Sófocles, Jurandy exigiu o direito de enterrar seus mortos. “É um tema muito grave quando se trata da violência policial. A polícia faz de tudo para que não sejam descobertos os corpos. Porque, se o corpo não for descoberto, não tem caso na Justiça. E isso vem já da ditadura militar e de antes. É por isso que se pode negar crimes políticos e crimes não políticos. Sem corpo, não há caso”, pontua Bernard, e salienta a referência que seu filme faz a Antígona e ao risco sofrido por Jurandy. “Esse é o nível de barbaridade. Não se sabe em que circunstâncias essas pessoas foram levadas. Isso é totalmente coerente com a história de Antígona. Mas Antígona tem uma outra dimensão, também, pois ela desafia as autoridades. Ela aceita o risco pelo direito de enterrar seu irmão. No caso de Jurandy, foi exatamente isso. Ele sabia que estava correndo um risco grande na busca do corpo do filho”, compara Bernard.
Iniciada a produção em 2015 e lançado em festivais em 2018, o filme estreia comercialmente em um 2020 marcado por mais exemplos de violência policial. E a indignação só aumenta. “A dimensão de indignação não foi diminuindo ao longo do tempo. Eu não costumo assistir aos meus filmes depois. Eu tento me distanciar do filme, mas, cada vez que eu escuto mais uma história de uma pessoa agredida pela polícia, minha indignação só faz aumentar. Realmente, esse filme nasceu dessa indignação”, finaliza o cineasta. Nessa entrevista ao Scream & Yell, Bernard aborda a construção do seu filme, o contato com Jurandy e sua família, bem como embasa a discussão da necessidade urgente de se desvincular a competência de uma força policial ao seu alto nível de violência. Confira!
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