quinta-feira, 12 de novembro de 2020

MASCULINIDADE ORNAMENTAL

 "Donald Trump simboliza o exemplo perfeito da masculinidade ornamental"

CONTARDO CALLIGARIS


No New York Times de 29 de outubro, Susan Faludi publicou um artigo que me pegou fundo — como quase sempre me pega o que ela escreve sobre o que é ser homem e ser mulher desde o começo dos anos 1990.
Desta vez, ela escreveu sobre Donald Trump e começou evocando o fato de que muitos falam de Trump como se ele fosse o resto de um passado sem uso: machismo primário e tóxico, vulgaridade chula e virilidade retrô, ou seja, feita de agressividade, de competitividade até à última gota de sangue e, claro, de aparente intrepidez.
Eu mesmo já pensei apressadamente que Trump fosse um brutamontes de outra época. Faludi ironiza: "O presidente Trump conseguiu criar uma curiosa área de consenso entre liberais e conservadores, republicanos e democratas: quase todo mundo parece concordar que ele representa um retrocesso a uma versão vintage da masculinidade".
Faludi também cita imagens e metáforas do Trump que domina o corona vírus, salva a economia dos terríveis chineses e, enfim, luta pela gente e com a gente, como se fosse o herdeiro do espírito da geração que ganhou a Segunda Guerra Mundial (na qual, aliás o pai de Trump sequer lutou).
Ela conclui esse desfile de propagandas do presidente valentão com uma promessa do trumpista Sebastian Gorka: "os machos alfa estão de volta".
Pois bem, para Faludi, o bullying bombástico do estilo de Trump não é nenhum resto da virilidade do passado. Ao contrário, talvez seja a própria figura de uma nova masculinidade que não tem nada a ver com a gloriosa geração que derrotou os fascismos.
"O arquétipo masculino dos anos 1930 e 1940 era um homem comum anônimo que mostrou seu talento construindo edifícios, não atirando." Acrescento: nem (pior ainda) brincando de arminha.
E Faludi cita o presidente Franklin Delano Roosevelt (em 1932) para lembrar que os EUA não precisavam de lobos solitários, de competidores antiéticos ou de promotores imprudentes. "A América do New Deal premiava a virilidade útil, que se demonstra no serviço coletivo e na competência modesta."
Para Faludi, é esse ideal do servidor público heroico dos anos 1930 que continuou sustentando os soldados anônimos da Segunda Guerra, nos anos 1940. Faludi cita Ernie Pyle, grande correspondente de guerra que morreu no campo de batalha, no Japão: "Somos todos homens (...) lá fora, numa estranha noite, cuidando uns dos outros".
Para Faludi, a masculinidade da geração mais gloriosa (the Greatest Generation) era quase materna: consistia em cuidar dos outros, proteger, fugindo dos holofotes.
Nota: Há algo para se resgatar no clichê sempre criticado da masculinidade provedora, sim, do século 19, que era uma fonte de poder e de exclusão das mulheres da vida econômica, mas, ao mesmo tempo, também expressava uma vontade de cuidar, que talvez não fosse bom perder.
Vontade de cuidar? Para essa virilidade, por exemplo, usar máscara é uma prova de força — a força para proteger os outros e assim servir o país, que é muito mais do que as cores de sua bandeira.
Para essa masculinidade contemporânea, feita de narcisismo, ostentação e egoísmo, Faludi encontra um nome perfeito: é a "masculinidade ornamental".
Trump é o exemplo perfeito. Bolsonaro também seria. Trata-se de uma maneira de ser homem devorada pela dúvida (será que sou?) a ponto de se mostrar sempre obcecada pela aprovação, pela cena, pelo teatrinho. Em suma, a masculinidade contemporânea parece ser uma pura encenação —ou seja, o exato contrário da geração dos guerreiros que foram à luta nos anos 1940.
A masculinidade ornamental é pose. E sua referência é de segunda mão. O soldado não se torna homem nos campos de batalha, mas nos filmes dos anos 50 e 60. O vaqueiro enfrenta as planícies do oeste a partir dos filmes da mesma época. A masculinidade contemporânea é uma cópia da cópia.
Trump se tornou um empresário famoso por fazer o papel de um empresário famoso no "Aprendiz", na televisão.
A conclusão de Faludi é perfeita e hilária: o macho ornamental moderno, eterna criança preocupada em capturar o olhar dos adultos, "sempre à procura de um pedestal e de um espelho", tornou-se a caricatura do clichê misógino da feminilidade. Não era isso o que as mulheres queriam: chamar nossa atenção? Bom, é nossa vez!
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), '
Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta)
e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)

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