quinta-feira, 3 de março de 2022

POUCA COISA, QUASE NADA...

 


Sexta-feira, meio da manhã. Céu mais para o cinza, esparsos rasgos azuis. Duas borboletas marrons com manchas pretas parecem brigar perto do jasmim cheiroso que vai subindo por três pisos. Várias outras, idênticas, se juntam, todas esvoaçando numa espiral desordenada, num agito que não consigo entender, sem, porém, conseguir perturbar a paz deste momento.

Deitado na rede estrategicamente colocada, domino, além de meu jardim, um pedaço da avenida Jequitaia, uma fatia do quartel dos fuzileiros navais e os galpões n°7 e n°8 do porto. Os outros estão escondidos pelos flamboyants por mim plantados há anos.

Uma ameaçadora nuvem obscura invadiu meu espaço. Caem algumas gotas. Em poucos minutos começará uma chuvarada que o noticiário da TVBahia de ontem não anunciara. Um verdadeiro Iguaçu! O jardim se deliciando com tamanha generosidade celestial...

Fico por longos momentos balançando preguiçosamente. A rede é a maior invenção do homem com, talvez, a roda e o zero. Com a idade - sou bem velho, meus amigos! -  aprendi a dar importância às tênues diferenças entre sucessivos instantes aparentemente similares. Observar, por exemplo, os galhos da cajazeira a sacudir suas folhas amareladas ou um veleiro perdido devagar na imensidão acetinada da baía.

Abro o livro do senegalês Mohamed Mbougar Sarr do qual tanto se fala na França. “A mais secreta memória dos homens” ganhou em 2021, por unanimidade, o prêmio Goncourt. Domina a língua de Proust como poucos, sua erudição impressiona e, se não sou muito sensível a eventuais excessos oníricos, sua análise da complexa dicotomia entre ser emigrado africano e escritor parisiense me desarma.

Hoje almoçaremos em casa. Um prato simples e saboroso, receita de Gel, dona do Luar das Águas, uma das primeiras pousadas de Boipeba. Verduras e legumes cozinhados ao vapor, servidos com um molho à base de azeite doce, sal grosso e pimenta. Será sem dúvida aprovado pelo amigo Álvaro, convidado de honra e vegano impenitente. Para terminar, mousse de maracujá, o carro-chefe da Marta.

Talvez o leitor, um pouco impaciente e um tanto decepcionado, me critique pelo espaço mal-usado deste respeitável periódico. A quem interessam estas abobrinhas? Interessam sim, a mim. Porque remetem ao longo caminho iniciado num dia chuvoso de maio quando aqui cheguei, a cabeça cheia de sonhos e receios. Nestes mais de 46 anos, se pouco perdi das arestas, cortes e falhas de vidas anteriores, são as borboletas, a rede, as frutas e as verduras, os livros, a lenta tecelagem de fios afetivos, as nuvens que mudam a cor das águas e o bem-te-vi lembrando Itaparica que acabaram me identificando totalmente com esta terra então desconhecida até fazer dela o epicentro de meu universo.

 Dimitri Ganzelevitch

A Tarde, 5/março/2022

Um comentário: