Sexta-feira, meio da manhã. Céu mais para o cinza, esparsos rasgos azuis. Duas borboletas marrons com manchas pretas parecem brigar perto do jasmim cheiroso que vai subindo por três pisos. Várias outras, idênticas, se juntam, todas esvoaçando numa espiral desordenada, num agito que não consigo entender, sem, porém, conseguir perturbar a paz deste momento.
Deitado na
rede estrategicamente colocada, domino, além de meu jardim, um pedaço da
avenida Jequitaia, uma fatia do quartel dos fuzileiros navais e os galpões n°7
e n°8 do porto. Os outros estão escondidos pelos flamboyants por mim plantados
há anos.
Uma ameaçadora
nuvem obscura invadiu meu espaço. Caem algumas gotas. Em poucos minutos
começará uma chuvarada que o noticiário da TVBahia de ontem não anunciara. Um verdadeiro
Iguaçu! O jardim se deliciando com tamanha generosidade celestial...
Fico por
longos momentos balançando preguiçosamente. A rede é a maior invenção do homem
com, talvez, a roda e o zero. Com a idade - sou bem velho, meus amigos! - aprendi a dar importância às tênues diferenças
entre sucessivos instantes aparentemente similares. Observar, por exemplo, os
galhos da cajazeira a sacudir suas folhas amareladas ou um veleiro perdido devagar
na imensidão acetinada da baía.
Abro o livro
do senegalês Mohamed Mbougar Sarr do qual tanto se fala na França. “A mais
secreta memória dos homens” ganhou em 2021, por unanimidade, o prêmio Goncourt.
Domina a língua de Proust como poucos, sua erudição impressiona e, se não sou muito
sensível a eventuais excessos oníricos, sua análise da complexa dicotomia entre
ser emigrado africano e escritor parisiense me desarma.
Hoje
almoçaremos em casa. Um prato simples e saboroso, receita de Gel, dona do Luar
das Águas, uma das primeiras pousadas de Boipeba. Verduras e legumes cozinhados
ao vapor, servidos com um molho à base de azeite doce, sal grosso e pimenta. Será
sem dúvida aprovado pelo amigo Álvaro, convidado de honra e vegano impenitente.
Para terminar, mousse de maracujá, o carro-chefe da Marta.
Talvez o
leitor, um pouco impaciente e um tanto decepcionado, me critique pelo espaço
mal-usado deste respeitável periódico. A quem interessam estas abobrinhas?
Interessam sim, a mim. Porque remetem ao longo caminho iniciado num dia chuvoso
de maio quando aqui cheguei, a cabeça cheia de sonhos e receios. Nestes mais de
46 anos, se pouco perdi das arestas, cortes e falhas de vidas anteriores, são
as borboletas, a rede, as frutas e as verduras, os livros, a lenta tecelagem de
fios afetivos, as nuvens que mudam a cor das águas e o bem-te-vi lembrando
Itaparica que acabaram me identificando totalmente com esta terra então desconhecida
até fazer dela o epicentro de meu universo.
Lindo texto!
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