LEI QUE TRAMITOU NA SURDINA EM SALVADOR FAVORECE INTERESSES IMOBILIÁRIOS DE CARLOS SUAREZ, EX-DONO DA OAS
Projeto que enfraquece proteção ambiental na capital baiana foi sancionado em novembro, sem nunca ter aparecido na ordem do dia da Câmara Municipal.
O projeto tramitou quase que secretamente na Câmara antes de sua aprovação, em 4 de maio passado. Ele não apareceu na “ordem do dia”, documento que é publicado no site da casa legislativa com a relação de todas as propostas a serem votadas a cada sessão. Nem mesmo a aprovação dele constou na ata, publicada na versão impressa do Diário Oficial do Legislativo oito dias depois. Contraditoriamente, a primeira versão da ata havia sido publicada no site da Câmara no dia seguinte à votação. Lá, o projeto constava entre as proposições “discutidas, votadas e aprovadas, até a redação final”.
Outro fato curioso é que não havia registro no site da Câmara, na época, de que o projeto tivesse passado pela Comissão de Planejamento Urbano e Meio Ambiente antes de ser aprovado. Contudo, um parecer favorável, assinado por membros desta comissão e das de Finanças, Orçamento e Fiscalização e de Constituição e Justiça e de Redação Final, foi anexado em novembro, após o site AratuOn questionar os vereadores sobre o andamento incomum do projeto.
Conversei com dois ambientalistas de Salvador sobre o que representam as novas regras, mas, devido à falta de transparência, eles não conseguiram analisar todos os efeitos delas. Ambos foram enfáticos em dizer, contudo, que o empresário Suarez tem empreendimentos imobiliários em algumas das regiões afetadas e que a falta de debate sobre a nova lei o favorece. Conhecedores de processos movidos pelo empresário contra seus desafetos, eles pediram para não serem identificados.
Depois de fundar a OAS, Suarez deixou a empresa na década de 1990 e seguiu fazendo fortuna com outros negócios. De acordo com um levantamento feito pela Exame em 2013, ele tinha ao menos 35 empresas. Atualmente, Suarez se destaca no setor de energia e é conhecido como o “homem do gás”, por ser sócio de distribuidoras de combustível – mas nunca abandonou os negócios imobiliários, principalmente na Bahia.
A aprovação relâmpago do projeto de lei prejudicou o entendimento completo do que mudou nas regras de proteção ambiental. Isso porque faltam os mapas que ilustram as mudanças. Embora a redação final do projeto encaminhada para sanção do prefeito mencione esses anexos, apenas uma planta realmente está lá, a que ilustra os parques urbanos da Ilha de Bom Jesus dos Passos. De resto, há apenas uma folha em branco, indício de que nem mesmo os vereadores que assinaram o parecer favorável à proposta analisaram de fato as alterações previstas. Pedi mais informações para a prefeitura e a Câmara, por meio das assessorias de imprensa, mas não tive resposta.
Ao menos três artigos da lei sancionada tratam das Áreas de Preservação Permanente, ou APPs. Um diz que a vegetação nesses locais deve ser mantida ou recomposta “quando for possível” garantir e recuperar suas funções ambientais. Se comprovada a perda dessa função, a retirada da vegetação, “bem como a implantação de empreendimentos de utilidade pública, interesse social e atividades de baixo impacto” serão permitidas.
Essa decisão ficará a cargo do órgão licenciador, que a lei não especifica qual é. Para comportar as novas regras, foi revogado um artigo da Política Municipal de Meio Ambiente, que só autorizava corte de vegetação em Áreas de Preservação Permanente nos casos previstos pelo Código Florestal, como quando não houver outro local para ser construído um empreendimento de utilidade pública ou de interesse social.
A promotora Hortênsia Gomes Pinho, da Promotoria do Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo do Ministério Público Estadual da Bahia, quer que a lei seja considerada inconstitucional. Ela apontou seis motivos para isso, entre eles a falta de participação popular e de estudos técnicos para alterar áreas de proteção ambiental. A decisão de entrar com ação judicial, no entanto, cabe à procuradora-geral de justiça, Norma Cavalcanti, que ainda não se manifestou.
Em sua representação, a promotora Pinho cita a ausência dos mapas como um impeditivo para a análise detalhada das alterações da lei e chama atenção para o fato de que o órgão responsável pela elaboração dos mapas na legislação urbanística de Salvador, a Fundação Mário Leal, não participou desse processo.
O filantropo destruidor
Algumas das mudanças mais preocupantes se referem às poligonais, que indicam o contorno e o tamanho das Áreas de Proteção Ambiental a serem preservadas. Dentro de cada uma é feito o zoneamento, que delimita usos diferentes por áreas. Mesmo sem os mapas, é possível verificar alterações em duas poligonais nos parques urbanos da Ilha de Bom Jesus dos Passos.
A nova lei também modifica o mapa do Sistema de Áreas de Valor Ambiental e Cultural, o Savam, em relação a seis ilhas da Baía de Todos-os-Santos, entre elas Bom Jesus dos Passos e Ilha dos Frades. A família Suarez tem interesse nessa região: administra atividades turísticas nas duas ilhas por meio da Fundação Baía Viva, como as visitas aos locais de valor histórico, principalmente igrejas construídas no século XVII. Por meio de convênios com o poder público, a fundação também desenvolve projetos de urbanização, que incluem restaurantes e centros comerciais. Criada em 1999 como entidade sem fins lucrativos, a fundação atualmente é presidida por Isabela Suarez, filha do empresário.
Em uma entrevista ao site ACBahia, em fevereiro de 2021, Isabela foi questionada sobre a insatisfação de algumas pessoas com a presença da fundação nas ilhas e disse que seu estatuto “permite a atuação em qualquer lugar da Baía de Todos-os-Santos” e que os investimentos da entidade no local, em que realiza obras voltadas ao turismo, por exemplo, “são absolutamente naturais diante do impacto que a ilha tem na região”.
O Ministério Público Federal, o MPF, e a Justiça Federal discordam. Carlos Suarez, seus sócios, suas empresas e até a Fundação Baía Viva já foram denunciados por causar degradação ambiental em diversas áreas da Ilhas dos Frades. Segundo o processo aberto em 2010, as obras realizadas no local resultaram em desmatamento, alteração da vegetação natural, aterramento de manguezais, eliminação e modificação da fauna e flora, além de outros prejuízos às APPs.
Em 2011, a justiça emitiu uma decisão liminar determinando a paralisação das obras, mas a ordem foi ignorada. A ação aponta que os denunciados haviam colocado cercas e construído muros impedindo, inclusive por meio de segurança armada, o acesso dos moradores da região a áreas públicas, além de avançar a propriedade privada sobre praias e manguezais. Até o entorno da Igreja Nossa Senhora de Loreto, um patrimônio tombado, foi alvo de intervenções não autorizadas da Fundação Baía Viva, que fez um píer, passeios e muros no local. Ao menos esse processo caminha na Justiça Federal – atualmente, está na fase dos depoimentos de testemunhas.
Outra alteração de poligonal foi feita na Área de Proteção de Recursos Naturais do Jaguaribe. Nesta região, também foi modificado o zoneamento – uma área deixou de ser Zona de Manejo Especial, que é destinada a vias de passagem ou a linhas de transmissão de energia, e passou a ser Zona de Ocupação Controlada, que onde podem ficar residências, hotéis e áreas de turismo e lazer.
Segundo os ambientalistas com quem conversei e o documento que comprova a venda de um terreno milionário, há muitos anos Suarez negocia terras nessa região, que ainda preserva muito da vegetação, lagoas e parques. A área inclui também uma das mais importantes avenidas de Salvador, a Luís Viana Filho, conhecida como Paralela. Em 2007, uma de suas empresas, a construtora Patrimonial Saraíba, vendeu um terreno de mais de 140 mil m² para a Faculdade de Tecnologia e Ciências, a FTC. Uma parte dessa área, sozinha, valia mais de R$ 19 milhões, segundo informações que constam em um processo de 2014 contra a instituição de ensino no Tribunal Regional do Trabalho da Bahia.
O empresário também possui loteamentos nessa mesma região. Um estudo técnico feito pelo Instituto Mãos da Terra e pela SOS Vale Encantado em 2018, com apoio do Ministério Público Estadual da Bahia, o MPE, aponta que os empreendimentos imobiliários Greenville e Colinas de Jaguaribe Sul e Norte, ambos de Carlos Suarez e que juntos integram o Condomínio Greenville Residencial, foram alvo de ações do Ministério Público Federal entre os anos de 2005 e 2010, por danos ambientais.
Nesse mesmo período, Suarez e seus sócios também foram denunciados por provocar degradação ambiental durante a construção do Canal de Mussurunga e do Parque Tecnológico, que ficam na mesma região da Paralela. De acordo com a denúncia do MPF, além de não terem licença ambiental dos órgãos competentes, as obras causaram danos à vegetação de Mata Atlântica que estava em APP, além de ter havido a captura de animais silvestres e ameaçados de extinção.
Ao mesmo tempo que responde a esses processos, Carlos Suarez se apresenta como um grande filantropo, principalmente por meio da Fundação Baía Viva. Em 2010, a entidade doou para a prefeitura um projeto de revitalização da Baía de Todos-os-Santos. Essa foi uma das 22 propostas encaminhadas por empresários do setor imobiliário e que formavam o pacote urbanístico Salvador Capital Mundial. A intenção do grupo era construir novas avenidas e viadutos, entre outras obras. Os planos, contudo, não foram adiante, justamente porque boa parte das construções afetaria áreas preservadas.
Entrei em contato com Isabela Suarez por telefone, Whatsapp e pelo e-mail publicado no site da Fundação Baía Viva, para ouvir a sua versão e a do Carlos Suarez sobre todas as informações desta reportagem, mas não tive resposta.
Vereadores parceiros
O projeto de lei aprovado secretamente pela Câmara foi sancionado em novembro passado por Bruno Reis, mas com alguns vetos. Estes foram mantidos pelos vereadores em uma sessão ocorrida no dia 15 de dezembro, na qual não foi permitido que vereadoras contrárias à proposta se manifestassem.
É justamente entre os vereadores que Carlos Suarez tem grandes parceiros. O presidente da Câmara, Geraldo Junior, facilitou a tramitação e permitiu que o PL fosse aprovado sem discussão. O parlamentar não é um desconhecido da família Suarez. Ele já chegou a fazer passeios em um shopping localizado na Ilha dos Frades na companhia do filho do empresário, Gabriel Suarez.
Mas o grande aliado da família é o vereador Alexandre Aleluia, filho de José Carlos Aleluia, um influente político baiano que acumulou seis mandatos como deputado federal. Derrotado nas urnas em 2018, José Carlos não ficou à pé – ganhou um cargo de conselheiro na usina hidrelétrica de Itaipu. Pai e filho são filiados ao DEM, que passou a se chamar União Brasil após se fundir com o PSL, partido pelo qual Jair Bolsonaro foi eleito presidente.
O texto original da lei que beneficiou Carlos Suarez, encaminhado em dezembro de 2020 pelo então prefeito ACM Neto, também do DEM/União Brasil, tinha apenas um artigo que tratava de mudanças em áreas de proteção ambiental da Ilha de Bom Jesus dos Passos, localizada na Baía de Todos-os-Santos. Quando chegou às mãos do vereador Aleluia, a proposta ganhou cinco emendas, somando mais de 30 artigos, os famosos jabutis – jargão político para emendas que não têm ligação direta com o texto principal, mas são inseridas para atender a interesses específicos. Na sua representação, a promotora Pinho destacou que essa é a sexta vez que o vereador “apresenta emendas completamente diferentes dos projetos originais”, sempre relacionados a regras ambientais.
Por meio da assessoria de imprensa da Câmara Municipal, questionei os vereadores Aleluia e Geraldo Júnior sobre a forma como conduziram a tramitação do projeto de lei e qual a relação deles com a família Suarez, mas não tive nenhuma resposta.
A lei teve muitos jabutis incluídos por Aleluia vetados pelo prefeito, por contrariarem outras leis municipais. Um dos vetos derrubou o artigo que tentava viabilizar a obra da Via Atlântica, um projeto que há muito tempo vem sendo combatido por ambientalistas por incluir uma ponte que atravessaria o Parque Ecológico do Vale Encantado, uma APP, e afetaria também o Parque Pituaçu. Atualmente, no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, existe uma nota de rodapé que condiciona a obra da Via Atlântica à manutenção da poligonal do Vale Encantado. O artigo proposto por Aleluia retirava essa nota.
Com 14,6 km de extensão, a avenida passaria nas imediações dos loteamentos Greenville, valorizando os empreendimentos imobiliários de Suarez. De acordo com o jornal A Tarde, o projeto da Via Atlântica foi concebido pela TTC Engenharia e doado para a prefeitura de Salvador pela Fundação Baía Viva. Mas estudos técnicos no Plano de Mobilidade Urbana da capital já concluíram que “o benefício desse traçado viário, para atendimento à demanda local, não era expressivo”.
Aleluia também foi um bom aliado de Suarez na aprovação de outros projetos, ao incluir várias emendas favoráveis aos interesses do empresário – e contrárias à proteção ambiental – em um pacote de três leis aprovado em 2020 e que está sendo questionado na justiça pelo MPE. Assim como aconteceu no ano passado, os vereadores votaram sem conhecer os mapas com as modificações propostas, pois eles só foram incluídos no processo legislativo posteriormente.
Segundo as entidades que entraram com a representação no MPE contra a legislação de 2020, uma das emendas propostas por Aleluia afeta a subsistência de famílias de pescadores da Ilha dos Frades ao proibir pesca, prática de camping e venda de artesanato. O acesso às trilhas e a outros locais de importância histórica e cultural também ficou mais controlado com as mudanças. Por outro lado, a mesma lei é mais permissiva com a construção de empreendimentos hoteleiros e autoriza a cobrança de ingressos para entrar na ilha. Para os ambientalistas com quem conversei, o objetivo é gentrificar o local, criando uma área exclusiva para turismo de alto padrão.
Um dos artigos da nova lei pode ajudar muito com isso, pois amplia o rol de atividades a serem regulamentadas pelo município nas ilhas, como os horários permitidos para tráfego de embarcações, a definição de áreas para mergulho esportivo e para criação de recifes artificiais com o afundamento de destroços. Nas palavras de Isabela Suarez, o que prejudica mesmo a Baía de Todos-os-Santos é o “preservacionismo absoluto” e a burocracia na aprovação de “empreendimentos sustentáveis de excelência”.
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