quinta-feira, 26 de maio de 2022

O CAÇADOR E A CAÇA


A percepção de que a violência está cada vez mais perto não é por acaso. Também não se deve ao fato de que o registro de câmeras, que capturam o desespero ou a impotência de vítimas diante de bandidos cada vez mais ousados, promove a sensação de insegurança. O problema é real, vem de longa data, mas é fruto de decisões desastrosas, embora calculadas, do governo Bolsonaro.
Matéria assinada por Carlos Madeiro para o UOL no último dia 30 dá conta de que, em 2021, foram registradas no Brasil uma arma a cada dois minutos por pessoas identificadas como caçadores, atiradores e colecionadores (CACs). No quesito munição, um atirador, que agora tem direito a registrar 60 armas (inclusive de uso restrito), pode adquirir, por ano, 60 mil munições, um limite que, com autorização do Exército, pode ser ampliado em até cinco vezes, o que faz com que especialistas em Segurança Pública chamam atenção para a bomba relógio que está se armando no país.
Enquanto especialistas advertem, lideranças bolsonaristas comemoram o armamento do “cidadão de bem”, apontando a redução dos índices de homicídios como prova da eficácia de tal política. É verdade que em termos absolutos a taxa de homicídios caiu. De acordo com o Atlas da Violência de 2021, houve decréscimo de 22,1% no número de homicídios entre os anos de 2018 e 2019. Contudo, segundo ainda o documento, que constitui o mais importante levantamento dos dados sobre a violência no país, os números devem ser tomados com cautela. Além da discrepância entre as informações disponibilizadas pelo Ministério da Saúde e pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o que revelaria “a deterioração na qualidade dos registros oficiais”, o Atlas aponta focos de tensão que sugerem que a violência deve permanecer em patamares altos e até mesmo aumentar.
Como focos de tensão, o Atlas aponta o incremento da ocorrência de crimes interpessoais e passionais, com facilitação do acesso de armas a criminosos; o recrudescimento da violência no campo, que atinge, sobretudo, aos povos indígenas, lideranças sem-terra, agrárias e assentados; o aumento da violência policial, conjugada à ausência de mecanismos de controle institucionais e, por fim, a politização da segurança pública, com acentuado risco à democracia.
Da mesma forma como a política de encarceramento adotada nas duas últimas décadas não reduziu a violência, o armamento de setores da população, longe de atenuar o problema e mitigar a sensação de medo dos brasileiros, deve produzir, justamente, o efeito contrário.
A violência politizada no espírito de vingança, medo e de desprezo pelos dados, além de se voltar contra os setores mais vulneráveis da sociedade, num contexto eleitoral de estimulo à confusão, faz com que todos sejamos alvos em potencial da política armamentista. Nessa situação, quando desconfiamos de que não somos os caçadores, é porque somos a caça.

Carlos Zacarias de Sena Júnior (Professor do Departamento de História da UFBA)
(Jornal A Tarde, Salvador, 20/05/2022)

Nenhum comentário:

Postar um comentário