(Foto: Antonio Cruz/AB)
Por que Lula resolveu se apresentar publicamente como fiador internacional de Nicolás Maduro e expedir para a Venezuela um certificado universal de democracia, firmado e garantido por sua reputação de democrata? Se você não consegue responder a esta pergunta, não está sozinho. Ricardo Kotscho, jornalista nos últimos 57 anos, ex-secretário de imprensa do primeiro governo Lula, insuspeito de antipetismo, perguntou-se exatamente o mesmo há uns dias: “O que Lula ganha ao defender Maduro?”. E completou: “É dar a cara a tapa e munição para adversários”.
Claro, continua existindo um conjunto expressivo de hippies velhos (alguns deles bem jovens) da esquerda mais antiga que pensa o mundo como pensava a geração da Guerra Fria. Para estes, não há dúvida de que ao dar tal declaração pública estaria defendendo o povo venezuelano contra os embargos imperialistas norte-americanos. Ou que Lula estaria restaurando a verdade sobre o país vizinho contra uma imprensa internacional mentirosa e parcial, que denuncia a degradação da democracia venezuelana motivada apenas por sua agenda oculta em sintonia com os interesses do capitalismo internacional, da corrupta elite local e do imperialismo estadunidense. Ou, enfim, que Lula está sinalizando que continuará sendo a última barreira em defesa da soberania dos países sul-americanos. Para estes, por outro lado, pouco interessa o que pensará a corja adversária de Lula, que o critica e persegue de toda forma, não importa o que ele faça.
Supondo-se que Lula tinha uma estratégia quando, do nada, começou a dar a Maduro uma aula pública sobre a necessidade de se contrapor à narrativa hegemônica que há anos conta que o país é uma autocracia, há de se perguntar qual seria mesmo a vantagem de deixar satisfeitos os hippies velhos do petismo, se o custo deste ato seria deixar insatisfeitos, perplexos, constrangidos e furiosos muitos outros segmentos sociais? Os hippies velhos lulistas estiveram, estão e estarão com Lula, não importa o que aconteça, de modo que nada lhe acrescenta ao seu fraco patrimônio de apoios e alianças, que, aliás, ele vem diligentemente dilapidando nos últimos meses, buscando deliberadamente temas e comportamentos que não lhe rendem novos amigos e que, no mínimo, interrompe a rota de adesão dos novos chegados.
As circunstâncias políticas não poderiam ser piores para que se possa vacilar de algum modo. Há ainda uma extrema polarização política e, na opinião pública, um volume impressionante de desconfiança pública com relação ao presidente, uma oposição compacta e majoritária no Parlamento, e muita gente começando a apresentar a Lula as duplicatas não resgatadas das promessas eleitorais, que ele, evidentemente, não consegue cumprir. É praticamente uma guerra, o governo precisará cuidadosamente distinguir entre as próprias forças, escassas, os aliados que pode conquistar, os neutros que ele precisa pelo menos que não entrem no conflito do lado do inimigo e os adversários, cada vez mais ousados, renhidos e compactos. A sobrevivência política desse governo depende de manter satisfeitos e comprometidos os aliados, atrair o máximo possível de neutros e isolar cada vez mais o adversário.
Afagar o ego dos próprios radicais, fazer o que bem entende, provocar e destratar os novos aliados e afastar os neutros, deixando os seus inimigos assanhados e mobilizados, não parece ser uma boa estratégia nas atuais circunstâncias. Mas o presidente segue soberbamente este caminho.
Nesta quinta (1/6), Lula resolveu bancar seu próprio advogado como juiz da Suprema Corte. Nos últimos anos, a indicação para a função de juiz do STF se tornou um dos prêmios mais cobiçados e uma das moedas mais valorizadas à disposição do presidente da República. Por meio dessa indicação, Bolsonaro manipulou dois atores importantíssimos no jogo político, Moro e Aras, desabilitando todo o perigo que ambos poderiam representar para os seus propósitos, até quando lhe foi conveniente.
Lula parece ter avaliado todas as demandas e pressões ao redor desta indicação e decidido que, antes de favorecer qualquer lado iria favorecer a si mesmo. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Pelo menos é essa a leitura pública realizada até mesmo por lulistas de convicção intensa e coração puro, desses que consideram que tais cargos deveriam servir ao sublime propósito de incrementar a representação identitária na cúpula do Poder Judiciário.
Neste caso, a pergunta sobre o que Lula ganha ao indicar Zanin é de mais fácil resposta que a questão que abre essa coluna. Proteção, recompensa à fidelidade oferecida em momentos difíceis, sintonia e afinidade ideológica parecem as respostas que ocorrem a todos. A questão é que compartilhar com Bolsonaro, nesta indicação, os mesmos objetivos que o ex-presidente teve ao indicar Nunes Marques e André Mendonça, não leva Lula muito longe no apreço público nem no reconhecimento de suas convicções republicanas. Ao contrário.
Assim, completa-se o quadro do desacerto da estratégia de Lula nesses dias. Além de não ampliar a sua base de apoio, perde distância moral de seu arquirrival, perde o discurso da superioridade republicana das suas atitudes. Foi assim que assistimos, esta semana, a defensores e amigos de ditaduras árabes e europeias de direita passarem dias criticando defensores e amigos de ditaduras latino-americanas de esquerda, como se ser de esquerda ou direita fossem agravantes ou dessem imunidade a qualquer autocracia. Nivelaram-se. Assim como vai prosperando a tese de que Lula está se igualando a Bolsonaro ao usar um critério absolutamente não republicano para indicar o futuro ministro do Supremo Tribunal Federal.
Lula e Bolsonaro não são iguais. Mas quem tem que demonstrar isso, com atitudes, condutas e discurso coerentes, é o próprio presidente, eleito com base na promessa de restaurar os bons modos republicanos e um elevado sentido de democracia no país. Neste momento, contudo, Lula parece muito pouco empenhado em dar demonstrações dessa diferença. E vai dando margem à interpretação contrária que se materializa na seguinte pergunta: O que Lula quer com isso? Igualar-se a Bolsonaro.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)
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