"Violência fria" foi o tema de um artigo que escrevi com a colaboração de minha colega Lorena Volpini, há uns 3 anos; veio a público no Caderno CRH de número 76, no ano de 2016. Volto ao assunto porque ele infelizmente permanece muito atual.
Um traço característico dessa modalidade de violência é que em seu exercício o agressor não confronta as vítimas, não entra em contato direto com elas no processo em que as lesa ou aniquila; o ato lesivo constitui efeito indireto de uma estratégia voltada para garantir o máximo proveito a quem o perpetra ou ao grupo a que serve (é esse o seu objetivo direto, em detrimento de direitos de terceiros). Envolve um cálculo que permanece velado. Outro traço distintivo dessa classe de violência é que seus agentes se ocultam sob uma capa institucional que os torna impessoais, "invisíveis". Por outro lado, suas vítimas também se "invisibilizam" de maneira simétrica: caem na vala comum do anonimato. No citado artigo, para ilustrar a impessoalidade dos agentes num tal processo evocamos as páginas do romance As vinhas da ira em que John Steinbeck descreve o sentimento de impotência de pequenos produtores rurais norte-americanos a quem foram tomadas as suas terra, mas não viam contra quem reagir, não sabiam como enfrentar a instituição sem rosto que os despossuía. Isso facilita a blindagem dos promotores da violência fria. Em geral ela implica na construção de um enclave privado no aparelho de estado. Mas pode verificar-se de outros modos.
Uma indústria farmacêutica que põe à venda remédios inócuos com o rótulo de drogas eficazes para tratamento de doenças graves provoca morte e dor em muita gente cujas faces seus dirigentes não precisam encarar. Nesse caso, os bandidos matam de longe e seu esconderijo institucional raras vezes é devassado de modo a que os principais responsáveis pelo crime sejam efetivamente alcançados. O objetivo de industriais dessa casta é maximizar seus lucros, eliminando a despesa com princípios ativos. A fim de ter êxito na fraude assassina, devem burlar a a vigilância sanitária, ou fazer com que ela não funcione. A punição, quando ocorre, nunca é proporcional ao dano.
Este é um exemplo extremo e que parece distante. Vejamos algo próximo e bem atual. A liberação e o uso em alta escala de agrotóxicos reconhecidamente danosos, proibidos em em muitos países por serem cancerígenos e de vários outros modos nocivos à saúde humana produz, claro está, diversos efeitos deletérios. Muita gente é intoxicada, adoece e morre por conta disso; abelhas são dizimadas, lençóis freáticos são envenenados. As desgraças assim provocadas raramente são advertidas: a maioria da população permanece desinformada. Resultam dessa prática doenças graves e mortes penosas, mas entre a causa e o efeito medeia, na maioria dos casos, um intervalo que não deixa a etiologia manifestar-se com evidência chocante. De resto, este nexo causal pode tornar-se patente em numerosos casos particulares sem que tais óbitos sejam computados em levantamentos epidemiológicos. Mesmo quando constatadas em estudos de circulação restrita, as morte de trabalhadores rurais expostos de forma direta a tais venenos veem-se ignoradas pelo grande público; e este mesmo grande público - atingido, logo em seguida, pela intoxicação sistemática assim deflagrada - ignora o crime de que é vítima. Muitos até aplaudem seus carrascos. No Brasil, entre 2007 e 20015, segundo dados do Ministerio da Saúde, 84,2 mil pessoas, entre trabalhadores e moradores do campo, sofreram intoxicação após exposição a defensivos agrícolas (média de 25 intoxicações por dia). Convenhamos que este é um indicador nada desprezível do efeito que produtos assim tratados podem ocasionar na massa de consumidores. Mas os barões do agronegócio acham pouco: reclamam do rigor da fiscalização, querem, com o chamado PL do veneno (PL 6.299/02), tornar mais frouxa a legislação pertinente; buscam manietar a ANVISA e o IBAMA.
Colocam seu lucro acima da saúde pública e da vida humana.
O Brasil já é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo e o mais liberal na sua aceitação. Como se não bastasse, muitos agrotóxicos ainda proibidos são aqui empregados clandestinamente, em face da fiscalização precária. O resultado é fácil de deduzir. Mas consegue-se ocultá-lo.
O mesmo sucede em vários outros campos. Calamidades evitáveis, fruto da ganância de empresas inescrupulosas que assim fazem grande número de vítimas são descritas como "acidentes", "tragédias". É o caso, por exemplo, dos previsíveis desastres ocorridos em Mariana e Brumadinho. Eles ocorreram porque riscos foram desprezados numa economia mortífera, hábito de uma administração que de modo sistemático subordina ao lucro de poucos a vida e o futuro de populações inteiras. Não houve tragédia do destino: houve crime hediondo, violência fria. Os dirigentes da Vale são assassinos covardes, reincidentes, verdadeiros serial killers que ainda podem matar muito mais, com a cumplicidade dos governantes que compraram. O dano que provocaram é de uma dimensão absurda: tiraram centenas de vidas humanas e um número incalculável de vidas de outros animais; envenenaram rios, destruíram matas e lavouras, produziram uma devastação escandalosa; reduziram muita gente à miséria e comprometeram o futuro de uma parte considerável da população do país. Tornou-se evidente que a vida de seus próprios trabalhadores era para eles de menor importância que os lucros e dividendos de seus acionistas. O desprezo e a insolência com que regateiam indenizações, a solércia com que têm escapado das multas retoricamente aplicadas mostram que têm poderosas costas quentes. Seu dinheiro elegeu os legisladores que ajustam a seu ditado as normas e controles a que teoricamente deve submeter-se a sua nefanda empresa. A justiça não os alcança, mal lhes provoca passageiros arranhões na pele curtida. Acima da lei, acima do governo que encabrestam, eles riem do país e do povo. São genocidas, mas passam por gente fina, promotores do progresso, da riqueza.
A propósito, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deve estar muito satisfeito: em nome de um ajuste das contas públicas que nunca se verificou, o celebrado estadista (responsável por quebrar o país duas vezes) entregou a preço de banana a Vale do Rio Doce a um bando de malfeitores. Aí está, bem visível nas manchetes de jornais de todo o mundo, o grande lucro que propiciou o país. Acho que ele tem direito a boa parte dessa lama toda.
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