Nasci em Salvador, na Bahia, tenho 34 anos e sou filha de Celeste Bispo, professora graduada em letras e investigadora da Polícia Civil baiana. Meu pai é um artista plástico, faz esculturas em madeira. Eles nunca se casaram, mas ele sempre esteve presente em minha vida. Sou filha única. Cresci num bairro central de Salvador, o Garcia. Durante minha vida toda, estudei no Colégio Antônio Vieira — uma tradicional escola particular. Apesar de eu viver num estado com cerca de 82% da população preta ou parda, na escola toda havia no máximo 20 estudantes negros. Na minha sala eram eu e mais dois, na melhor das hipóteses.
Eram comuns as panelinhas na sala de aula. Um colega me deu o apelido de Melanina e depois ele abreviou para Mel. Quando alguém perguntava “Por que Mel?”, ele ria para explicar. Certa vez eu estava na fila da cantina e uma menina que eu não conhecia me disse que macacos não precisavam comer. Nós éramos estudantes da mesma escola, tínhamos a mesma condição social e a única coisa que nos diferenciava naquele momento era minha cor.
Se existe uma coisa que aprendi desde cedo é não deixar de me posicionar. Eu não me descobri negra, eu sempre soube que era. Cresci ouvindo a minha avó falar iorubá (idioma nigero-congolês que se tornou patrimônio cultural imaterial de Salvador em 2019). Ser negra e viver a cultura negra sempre foi uma coisa muito natural para mim. E é essa formação sólida que me dá a leveza de falar sobre racismo. Eu sempre corrigi, por exemplo, quando alguém me chama de morena. Morena é branca de cabelo preto. Eu sou negra.
Ainda que a maioria avassaladora da população baiana seja preta, eu era vista por muitos como a negra burguesa, a patricinha que morava num bairro majoritariamente negro, mas não estudava na escola pública. Era muitas vezes constrangedor o meu ir e vir do colégio. Eu ia a pé, passava em frente à escola pública e muitas vezes era ofendida por estudantes que diziam que eu estava querendo ocupar um espaço que não era meu.
Por influência de alguns tios, sempre gostei muito de exatas. Meu desejo era estudar engenharia mecatrônica. Tenho um tio que mora na Alemanha e ele me incentivou a fazer o curso e depois me mudar para lá. Fui, então, estudar alemão. Prestei o vestibular e passei em uma universidade particular e longe de casa. Por isso eu acabei optando por cursar estatística na Universidade Federal da Bahia.
Foi na graduação que começou minha experiência de vida no exterior. Durante um programa de trabalho nas férias, escolhi ir para a Louisiana, justamente por ser um estado conservador, com uma forte cultura negra. Fiquei lá por quatro meses. Logo depois fiquei por nove meses em um navio internacional de cruzeiro. Havia muitas situações de assédio moral e sexual. Um dia, meu supervisor me chamou de “negra de merda”, e eu levei o caso para o comandante do navio. Após ouvirem testemunhas, o homem foi desembarcado. Mas me colocaram para trabalhar sob a supervisão da mulher dele.
“ESTAVA COM A CHAVE DE MEU CARRO NA MÃO, USANDO CALÇA DE LINHO, O CABELO IMPECÁVEL. A MOÇA QUE ME ATENDEU SIMPLESMENTE DISSE QUE A RESPONSÁVEL ESTAVA OCUPADA E QUE EU PODERIA DEIXAR MEU CURRÍCULO COM ELA. ELA DEDUZIU QUE EU QUERIA UM EMPREGO PELA MINHA COR”
Voltei para a faculdade e passei a integrar a Aiesec, a maior ONG de liderança jovem do mundo. Em 2010 fui chamada para um trabalho na Africare — uma instituição com sede em Washington D.C. Foi a experiência mais incrível de minha vida. O prédio todo em vidro, três andares, com várias pessoas negras vestidas em trajes formais e a recepcionista era branca. Entende a situação? Ninguém ali era exceção. Aquilo ali mexeu comigo de uma forma…
De volta ao Brasil, fui trabalhar na coordenação de análise criminal da Secretaria da Segurança Pública da Bahia. Como estatística, eu era a responsável por fazer o mapeamento detalhado dos homicídios no estado. A maioria das mortes era de jovens negros, na faixa dos 25 anos. Trabalhei por oito meses, até que fiquei doente e pedi minha exoneração. Eu não conseguia mais fazer aquilo, não havia sentido eu ficar contando corpos negros. O que seria feito a partir daqueles resultados? Aproximaria a polícia da população e de fato a colocaria para proteger, e não para matar? Não. Então não dava para continuar.
Voltei para a Aiesec e fui trabalhar na Índia, numa pesquisa de mercado com foco em países emergentes. Fiquei lá por seis meses. No Taj Mahal, por exemplo, as pessoas pediam para tirar fotos comigo. Eu era a atração exótica. Depois disso fui para a Rússia, mas me sentia insegura e desprotegida. Ouvi de um russo que negros eram como cachorros e por isso eles não se misturavam.
Quando voltei para o Brasil, decidi abrir uma empresa de intercâmbio especializada em destinos de países da África. Fui a uma padaria de luxo para fazer a encomenda das comidinhas que serviria na inauguração e pedi para falar com a responsável. Estava com a chave de meu carro na mão, usando salto alto, calça de linho, com o cabelo impecável. A moça que me atendeu simplesmente disse que a responsável estava ocupada e que eu poderia deixar meu currículo com ela. Ela deduziu que eu queria um emprego pela minha cor. Em outra situação, eu estava dentro de minha agência e um senhor entrou e me disse: “Você não sabe quem é o dono daqui, não é?”. Ou seja: ele também deduziu que eu não poderia ser a dona.
Em São Paulo, fui chamada para dar uma palestra num evento em que a Elza Soares seria entrevistada. Quando perguntei ao segurança onde era a entrada, ele me direcionou para circular o prédio pelo lado de fora. Na hora não me toquei, mas ele me encaminhou para a entrada dos fundos, de serviço.
Em uma de minhas viagens para o exterior (Sauanne Bispo já visitou 31 países), me perguntaram se aquela era minha primeira viagem internacional. As pessoas não estão acostumadas com pretos nos saguões dos aeroportos, mas eu vou encher os aviões de pretos. As pessoas precisam se acostumar com a gente ocupando nosso espaço. Lembro-me de uma vez estar em um hotel cinco estrelas em São Paulo participando de uma conferência internacional. Uma brasileira veio falar comigo em inglês. Ela supôs que uma negra naquele hotel só poderia ser estrangeira. Respondi, em inglês também, que ela poderia falar em português pois eu também era brasileira.
Recentemente, estive em um supermercado de classe média alta para comprar itens para fazer um risoto. O segurança ficou me seguindo o tempo todo. Até que eu perguntei: “Você é pago só para me seguir ou para carregar minhas sacolas também?”. Eu costumo dizer que, antes de saberem quanto eu tenho em minha conta, as pessoas enxergam a cor de minha pele. Eu sou um corpo negro antes de qualquer coisa.
Hoje eu pego microfones para dar palestras sobre inclusão racial. São 132 anos de abolição da escravidão e não vemos avanços. É exaustivo ficar repetindo esse assunto, mas é a continuação de uma luta de resistência que começou há mais de 500 anos. Ser negro no Brasil é ter de se justificar o tempo todo. Vê o resultado do racismo estrutural?