sexta-feira, 2 de abril de 2021

OS ÚLTIMOS DIAS DE VAN GOGH

 

Auvers-sur-Oise, o vilarejo francês onde Van Gogh passou seus últimos dias

Um dia de passeio por esta cidade próxima de Paris aonde o artista foi para ser tratado


Mural a partir do filme ‘Sede de viver’, de Vincent Minelli, em um bar de Auvers-sur-Oise (França).BARRY LEWIS / GETTY

Vincent van Gogh foi um pintor de excessos: muito expressivo, muito atormentado e muito inquieto. Durante os seus 37 anos de vida, teve 38 endereços, em quatro países. Entre outros lugares, viveu em HaiaAmsterdãBruxelas, Antuérpia, Londres, Ramsgate, Paris, Arles, Saint-Rémy-de-Provence e, finalmente, Auvers-sur-Oise. Estimulado por Pissarro, ele chegou a esta última e pequena localidade de cerca de 7.000 habitantes, situada a 27 quilômetros de Paris, no noroeste da Île-de-France, para se tratar com o doutor Gachet, e ali passou os seus últimos 70 dias, muito intensos, durante os quais produziu 72 pinturas, 33 desenhos e uma gravura.

França foi seu último porto. Seu irmão Theo se instalou em Montmartre na década de 1880 e convenceu Vincent a experimentar a sorte naquela que era, então a capital da arte no Ocidente. Ali, estabeleceu amizade com colegas de ofício. Depois, experimentou a luz do sul, conheceu manicômios e passou por altos e baixos, até encontrar repouso no norte.

10h00 Auberge Ravoux

Auvers é uma cidade marcada pela presença de Van Gogh. Espalhadas pela localidade, há 29 placas com imagens dos quadros que ele pintou e dos motivos (construções ou paisagens) que o inspiraram, tal como puderam resistir à passagem do tempo. Elas tornam possível identificar obras notáveis como Paisagem com carruagens e trem ao fundo, sobre a qual ele escreveu, em 13 de junho de 1890, em uma carta à sua irmã Willemine: “Procuro expressar a passagem desesperadamente veloz das coisas na vida moderna”. Ou Campos de trigo sob céu nublado, com a qual pretendeu, segundo contou a Theo, dizer aquilo que não saberia expressar com palavras.

No Auberge Ravoux (1), Van Gogh se hospedou por 3,5 francos a diária. Seu quarto e o de seu então companheiro de pensão, o holandês Anton Hirschig, permanecem intactos. Dadas as condições do lugar, não é difícil imaginar Van Gogh escrevendo ali a sua mítica observação: “Um dia ou outro creio que ainda encontrarei uma maneira de expor meus quadros, pelo menos em algum café”.

O ingresso (6 euros) inclui o direito de assistir a um curto documentário sobre a permanência de Van Gogh em Auvers, sua relação com Gauguin e com Theo e sua maneira incansável de produzir, com seu típico traço espesso, as obras iluminadas que as paisagens lhe inspiravam.

O restaurante é como um cartão-postal antigo. Preserva a mobília e a atmosfera de um clássico café de artistas, onde os turistas são envolvidos pela boemia.

12h00 Ateliê de Daubigny

Amigo de Corot e de Cézanne, influenciado por Courbet e considerado precursor do impressionismo, Charles-François Daubigny (1817-1878) pintou muitas cenas do vale do Oise. Teve uma casa no vilarejo e seu jardim foi pintado por Van Gogh em um dos quadros mais memoráveis dessa fase: O jardim de Daubigny. Uma maneira de homenagear esse pintor de paisagens, referência e mentor das gerações seguintes, é visitar a sua casa-ateliê (2), onde estão expostas algumas de suas obras, retratos de familiares e de amigos como Corot ou Oudinot. Não muito longe dali se encontra o Museu Daubigny (3), localizado na belíssima casa de campo de Colombières, onde obras suas convivem com exposições temporárias que refletem a vocação artística do vilarejo.

Não há muitas opções para comer: ou você se entrega às receitas tradicionais do Auberge Ravoux, custe o que custar, ou se inclinar para os abundantes pratos do Café de la Paix (4), mais econômico.

Campos de Auvers-sur-Oise, que Van Gogh pintou em julho de 1890 em sua obra ‘Campo de trigo com corvos”, uma das últimas pinturas do artista.PIERRE VAUTHEY / GETTY

5h A casa do doutor Gachet

O doutor Gachet foi o responsável pela chegada de Van Gogh a essa localidade, onde foi tratar, com ele, de seus distúrbios. Era um personagem extraordinário: médico, colecionador e artista. Adquiriu a sua residência (5) em 1872 e, na companhia de Pissarro, Cézanne, Guillaumin e Van Gogh, pintou e gravou várias obras. A visita, gratuita, permite que se descubra em seu estado original a presse à bras (prensa manual de gravação) e vários objetos que aparecem nas telas de Van Gogh, como a famosa mesa vermelha do célebre Retrato do doutor Gachet.

A paisagem em torno da casa tem o clima do filme intimista que Maurice Pialat dirigiu em 1991, Van Gogh, que se aprofundava na possível relação entre o pintor e a filha do médico, Marguerite, cujo piano também continua ali, idêntico ao do quadro Marguerite Gachet ao piano.

17h Castelo de Auvers

A 20 minutos dali, a pé, uma outra imersão impressionista aguarda pelo visitante. Não só pelo castelo de Auvers (6), uma sóbria edificação do século XVII, mas também pelo jardim que o cerca, convite a paisagens flutuantes, cercas-vivas de buxos e labirintos vegetais.

Dentro do château, chama a atenção o centro de arte, com exposições temporárias como Viagem ao tempo dos impressionistas, um testemunho do final do Segundo Império, quando o barão Haussmann empreendeu uma reconstrução urbanística de Paris que geraria grandes mudanças no modo de vida da população. Cafés, casas de dança, bulevares ou passagens se tornaram incontornáveis, e os pintores foram cronistas, em seus quadros, de uma realidade fervilhante. Além da legalidade de que gozava o absinto (uma bebida perigosa que também possui um museu aqui (7)musee-absinthe.com), aquele período foi marcado pelo desenvolvimento das ferrovias, o que permitiu que muitos pintores saíssem à procura de ambientes campestres para retratar, como fez Van Gogh em Paisagem com o castelo de Auvers e em muitos outros quadros.

19h Cemitério e igreja

Não dá para se despedir do vilarejo sem antes visitar a sua igreja (8). Como não lembrar do quadro A igreja de Auvers? Ela continua ali, com o campanário quadrangular típico da região, semelhante à maneira como ele descreveu para Willimine: “Tenho um quadro maior da igreja –com um efeito em que a construção parece ser violeta, contra um céu azul escuro, cobalto puro; as janelas parecem manchas de azul-marinho, o telhado é violeta e, em uma parte, alaranjado—“.

No final da tarde de 27 de julho de 1890, Vincent teve uma recaída e seu estado de ânimo começou a vagar em meio àqueles campos que ele havia pintado sem parar durante 69 dias. De repente, pegou um revolver e atirou contra o próprio peito. Conseguiu chegar até o quarto número 5 do Auberge Ravoux. Hirschig avisou Theo, que chegou de Paris no dia seguinte para vê-lo agonizante. Foi enterrado no cemitério de Auvers-sur-Oise (9), um quilômetro mais acima da igreja. Seis meses depois, completamente entregue, foi Theo que faleceu. Em 1914, sua esposa, Johanna, conseguiu fazer com que o enterrassem ao lado do irmão.

No final da tarde de 27 de julho de 1890, Vincent teve uma recaída, pegou um revólver e atirou contra o próprio peito.

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