sexta-feira, 2 de abril de 2021

VAN GOGH SÓ PARA MIM

 


Apareceram quase que de um dia para outro, as três juntas como os Reis Magos, a Santa Trindade ou as Virtudes Teologais, com suas amplas folhas parecendo asas, no vaso onde coloco tudo aquilo que varro no meu terraço com vista para o porto e as ilhas. Não demorei a descobrir que se tratava de girassóis. Van Gogh só para mim. Por enquanto cada flor olha para uma direção diferente. Aguardemos.

O outono chegou com seu mormaço pegajoso, suas baratas tamanho GG e suas chuvas raivosas. Imagine um fim de dia, nuvens cinzentas uniformizando a baía e o céu. O sol não passa de uma moeda sem brilho nem valor. Itaparica, mera pincelada. Hesitaremos entre Turner e Monet. Mas se de repente o vento rasgar a cortina e reaparecerem, na costumeira orgia de cores tropicais, os cargueiros enferrujados e os brancos ferry-boats, então uma abstração de Nicolas de Stäel surgirá, só para mim.

Com junho renascente, se as vacinas o permitirem, estarei pelo Pelourinho enfeitado, passeando de manhã bem cedinho a contemplar e fotografar as bandeirinhas de Alfredo Volpi. Só para mim e para Antônio, João, Pedro, Paulo...

Fui sempre um visual com memória treinada para peneirar os museus de meio mundo. Vejo Carybé numa roda de capoeira e Jean-Baptiste Debret quando passa o vendedor de vassouras debaixo de minha janela. Na feira de São Joaquim – o maior espetáculo ao ar livre da capital, esqueça o carnaval – é Pierre Verger que reencontro a cada carregador, cada barraca de farinha, cada amontoado de panelas de barro.

Como num jogo da internet, as formas e as cores se transformam para se reordenarem em novas composições lembrando outras obras, outros artistas. Você sabe qual é o pedaço de que mais gosto entre o Farol e o Porto da Barra? Aquele, bem escondido, que alterna pequenos bancos de areia com rochas obscuras e dilaceradas, perto do Hospital Espanhol onde as marinas de Pancetti surgem sem pedir licença. Quando ainda podia ir até os Alagados numa boa, esbarrava com magras mães de Portinari e opulentas sedutoras de Di Cavalcanti.

Em manchas de umidade dos velhos muros de bairros esquecidos, descubro Pollock, Soulages e José Guerrero. Um conjunto de porcelanas ou de vidros me lembram Giorgio Morandi. Uma simples fruta abandonada numa bancada enegrecida ou um amontoado de bicicletas enferrujadas e lá está o mexicano Gabriel Orozco que hospedei por quase um mês, ainda jovem e desconhecido, com a esposa Maria na minha casa da rua Direita de Santo Antônio.

Defina sua vida. Uma pista caótica de grandes e pequenas pedras? Um triste e angustiante calvário? Uma loucura psicodélica? Para mim, é uma enciclopédica exposição de obras de artistas dançando na ciranda de um céu movediço, mutante...

Dimitri Ganzelevitch 

A Tarde, sábado 3 de abril de 2021

 

 

 

 

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