Apareceram quase que de um dia para outro, as três juntas
como os Reis Magos, a Santa Trindade ou as Virtudes Teologais, com suas amplas
folhas parecendo asas, no vaso onde coloco tudo aquilo que varro no meu terraço
com vista para o porto e as ilhas. Não demorei a descobrir que se tratava de
girassóis. Van Gogh só para mim. Por enquanto cada flor olha para uma direção
diferente. Aguardemos.
O outono chegou com seu mormaço pegajoso, suas baratas
tamanho GG e suas chuvas raivosas. Imagine um fim de dia, nuvens cinzentas
uniformizando a baía e o céu. O sol não passa de uma moeda sem brilho nem valor.
Itaparica, mera pincelada. Hesitaremos entre Turner e Monet. Mas se de repente
o vento rasgar a cortina e reaparecerem, na costumeira orgia de cores
tropicais, os cargueiros enferrujados e os brancos ferry-boats, então uma
abstração de Nicolas de Stäel surgirá, só para mim.
Com junho renascente, se as vacinas o permitirem, estarei
pelo Pelourinho enfeitado, passeando de manhã bem cedinho a contemplar e
fotografar as bandeirinhas de Alfredo Volpi. Só para mim e para Antônio, João, Pedro,
Paulo...
Fui sempre um visual com memória treinada para peneirar os
museus de meio mundo. Vejo Carybé numa roda de capoeira e Jean-Baptiste Debret
quando passa o vendedor de vassouras debaixo de minha janela. Na feira de São
Joaquim – o maior espetáculo ao ar livre da capital, esqueça o carnaval – é
Pierre Verger que reencontro a cada carregador, cada barraca de farinha, cada
amontoado de panelas de barro.
Como num jogo da internet, as formas e as cores se
transformam para se reordenarem em novas composições lembrando outras obras,
outros artistas. Você sabe qual é o pedaço de que mais gosto entre o Farol e o
Porto da Barra? Aquele, bem escondido, que alterna pequenos bancos de areia com
rochas obscuras e dilaceradas, perto do Hospital Espanhol onde as marinas de
Pancetti surgem sem pedir licença. Quando ainda podia ir até os Alagados numa
boa, esbarrava com magras mães de Portinari e opulentas sedutoras de Di
Cavalcanti.
Em manchas de umidade dos velhos muros de bairros esquecidos,
descubro Pollock, Soulages e José Guerrero. Um conjunto de porcelanas ou de
vidros me lembram Giorgio Morandi. Uma simples fruta abandonada numa bancada enegrecida
ou um amontoado de bicicletas enferrujadas e lá está o mexicano Gabriel Orozco
que hospedei por quase um mês, ainda jovem e desconhecido, com a esposa Maria na
minha casa da rua Direita de Santo Antônio.
Defina sua vida. Uma pista caótica de grandes e pequenas
pedras? Um triste e angustiante calvário? Uma loucura psicodélica? Para mim, é
uma enciclopédica exposição de obras de artistas dançando na ciranda de um céu
movediço, mutante...
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde, sábado 3 de abril de 2021
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