terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

O PORTUGUÊS ÁRABE

 'Se, num passe de mágica, fosse possível apagar, de Portugal actual, todos os vestígios do legado árabe, a nível étnico e cultural, a paisagem humana, física e civilizacional que contemplaríamos seria inteiramente diversa. Tornar-nos-íamos, possivelmente, louros e não morenos como habitualmente somos. Deixaríamos de falar o latim arabizado que é o português, e perderíamos mais de mil palavras do nosso léxico. Muitas das nossas povoações deixariam de existir ou mudariam de nome.


Não saberíamos como nomear a maior parte do que comemos ou cultivamos. Como chamaríamos o jasmim, a laranja, a tâmara e a romã? Que nome daríamos ao alguidar, ao alfaiate, ao alaúde e ao alferes? A nossa poesia – o mais alto valor do génio português – sem o contributo árabe, não teria visto nascer, provavelmente, as cantigas trovadorescas. E sem o sentimento de saudade, herdado do nasib da qasida árabe, de raiz beduína, que seria feito do nosso lirismo? Que Camões seria possível? A este respeito, e bem, Fernando Pessoa afirma expressamente que nós somos um povo romano-árabe porque “foram os árabes que nos educaram”.
E Antero de Quental, não o esqueçamos, filia a nossa decadência na expulsão dos árabes. Nesse cenário de imaginação os núcleos históricos de muitas das nossas cidades perderiam o encanto do seu traçado labiríntico. Pensemos em Lisboa, sem Alfama nem Mouraria. Pensemos num Alentejo, sem a vertigem branca da cal das suas casas, e num Algarve sem açoteias6 nem chaminés, minúsculos minaretes sobre os telhados. Que artesanato teríamos? Sem tapetes de Arraiolos ou de Almalaguês, sem esteiras, sem filigranas, e sem azulejos. Que alcofas7? Que almotolias8? E a guitarra portuguesa, que seria dela, órfã de seu pai, o alaúde? E os adufes, e os pandeiros e as gaitas?
Estava escrito (maktub!) que sem destino não há fado e o nosso destino era cantá-lo e dançar mouriscadas9 e fandangos10. Os nossos ciganos também entoam cante jondo11 e no Alentejo, sob um manto polifónico, esconde-se a nostalgia dolente do cante herdada dos beduínos e da sulamiyya12 dos sufis13. Sem a Ciência Árabe – Medicina, Matemática, Astronomia, Geografia, Física e Botânica – que Renascimento teria sido esse? Que Filosofia teríamos tido, se os muçulmanos não tivessem preservado a maior parte do legado Greco-Latino desenvolvendo inovadoras direcções? Que Mística teria nascido aqui, sem Al-Urianî 14, Al-Martulî 15 ou Ibn Qasî 16?
Como é que um pequeno povo, como o nosso, teria chegado aos quatro cantos da Terra sem o auxílio das ciências de navegação árabes? Até os aviamentos que levávamos para bordo eram arrancados ao solo através de práticas agrícolas – ainda hoje usadas – trazidas pelos muçulmanos. Nesse aspecto, é sempre de lembrar, pelo que ilustra quanto ao carácter precursor das navegações luso-árabes, a viagem dos chamados Oito Aventureiros que, no século IX, em tempos do Califado de Córdova, partiram de Lisboa, por mar, tendo alcançado as Ilhas Canárias e depois o Marrocos.
Voltando à ficção histórica, que comida teríamos? Mais ou menos disfarçados, os guisados, cozidos e doces de grande parte da nossa cozinha tradicional não são senão receitas filhas de requintes introduzidos à mesa por Ziryab17 de Bagdade. O Gharb al-Andalus, território que grosso modo é hoje o de Portugal, participou da glória e do drama do Al-andalus. Al-Andalus é, para os Árabes, uma espécie da paraíso perdido, como o rei Faiçal da Arábia Saudita costumava sublinhar. Também para nós, Portugueses, o Gharb al-Andalus tem o valor de um símbolo: de sabedoria, de beleza e de tolerância. Fomos desapossados, durante séculos, dessa realidade-mito fundadora através da intransigência política e religiosa. A polaridade foi desfigurada ao retratarem-nos os Árabes e o Islão como parte do mundo do Outro, escondendo-nos que o Outro, afinal, somos Nós. Nestes tempos, em que surpreendentemente a Ciência, aproximando-se da Metafísica, quebrou as amarras do racionalismo aristotélico e cartesiano, urge afastar ridículos eurocentrismos ou quaisquer outros centrismos porque, em boa verdade, o centro está em toda a parte.''
Laurinda Lili.

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