terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

O SOM DO SANTO ANTÔNIO

 Boemia afasta moradores mais antigos do Santo Antônio Além do Carmo


Entre 2021 e 2022, houve aumento de 62% nas denúncias de poluição sonora
“Aqui mora gente”, dizia a placa instalada em uma casa no Santo Antônio Além do Carmo durante o Carnaval. Apesar de óbvio, o recado tentou evitar que pessoas subissem nas janelas e usassem a fachada como banheiro. Mais do que isso, os dizeres são reflexo do incômodo de parte dos moradores insatisfeitos com o aumento de frequentadores do bairro. O barulho causado pelo número cada vez maior de estabelecimentos comerciais foi responsável por 517 denúncias de poluição sonora nos últimos dois anos. Somente entre janeiro e fevereiro, 28 registros foram contabilizados na localidade.
Quando comprou uma casa no bairro em 2016, o ator Fabrício Boliveira, 40, se encantou pelo lado bucólico do Santo Antônio. Quem frequenta o local, chega a dizer que o espaço representa um pedaço do interior em plena capital. Nos dias de semana, em que o movimento é pouco, pode até parecer verdade
No entanto, quando o pôr do sol abre espaço para que bares e restaurantes fiquem lotados, especialmente entre sexta-feira e domingo, o barulho vira incômodo para muitos. Entre 2021 e 2022, as denúncias de poluição sonora saltaram de 195 para 317 no bairro - um aumento de 62%.
Fabrício acredita que a poluição sonora é um dos motivos para que moradores mais antigos deixem suas casas e escolham morar em outros bairros da cidade. “Moramos em casa geminadas, isso quer dizer que dividimos a mesma parede com um comércio e fluxo maior de pessoas. O barulho dentro de casa tem afastado os moradores antigos”, analisa o ator.
Quem anda pelo bairro e presta atenção nos detalhes, encontra uma série de placas de “vende-se” nas fachadas das casas residenciais que dividem espaço com pousadas, bares e restaurantes. Em uma distância de pouco mais de 500 metros, entre a Cruz dos Pascoal e o Largo do Santo Antônio Além do Carmo, conta-se ao menos nove identificações de imóveis à venda. A maioria deles instalado do lado da R. Direita em que não há vista para o mar.
Em um trecho de 500 metros ao menos nove construções estão à venda
Entre as casas à venda no bairro, uma é do arquiteto Will Marx. Morador do Carmo desde os anos 2000, acompanhou de perto as mudanças na localidade e explica que o som alto é um dos motivos para a vontade de se mudar, mas não o único.
“São vários motivos para a mudança, mas o barulho é um problema sério. Quem faz os eventos não está nem aí para a vizinhança”, critica.
O chef de cozinha Jorge Bispo, 50, colocava dois cones para demarcar a vaga em frente à sua casa no final da tarde de segunda-feira (27) quando conversou com a reportagem. Apesar de ser favorável à movimentação do bairro em que sempre morou, reconhece que as mudanças contribuem para que algumas pessoas se mudem. Entr
“A mudança do perfil do bairro influencia a migração das pessoas para outros lugares. O bairro se tornou muito popular a nível de pessoas que vem com o objetivo de se divertir e quem não se identifica acaba saindo”, afirma Jorge Bispo.
Voz e violão
Se em alguns bairros os paredões são o terror de moradores, no Santo Antônio a zuada é proveniente de características da boemia. As denúncias apuradas pela Sedur indicam que bares e restaurantes são as principais fontes emissoras, seguidos de áreas públicas.
“A maior parte das denúncias envolve voz e violão, teclado e bandas que os estabelecimentos contratam. Além de equipamentos de som voltados para a rua”, explica Fabricio Souza, fiscal de combate à poluição sonora de Salvador. Moradores relatam que o som alto atinge seu ápice no Carnaval, quando blocos desfilam pelas ruas do bairro, mas que aos finais de semana as reclamações são recorrentes.
Para denunciar poluição sonora em Salvador, basta discar 156 ou utilizar o aplicativo Sonora Salvador. A lei municipal 5.354/98 prevê que o volume permitido entre 7h e 22h é de 70 decibéis, e de 60 decibéis das 22h às 7h. A multa para estabelecimentos varia de acordo com o volume excedido e pode chegar a R$135 mil. Mas como saber se o volume foi ultrapassado?
Por mais que alguns aplicativos de celular sirvam para medir o volume, Fabricio Souza garante que eles não representam a realidade.
“Os aplicativos simulam a aferição, mas não trazem a realidade. O correto é utilizar o sonómetro, que passa por uma calibragem”, explica o fiscal
Estrutura
A voz de quem conversa nas mesas de bares e os músicos que se apresentam não são os únicos culpados pelas denúncias. A própria forma com que o bairro foi construído no século XIX contribui para o incômodo. As ruas estreitas e com casas próximas umas das outras dão a sensação de que o volume está mais alto, o que intefere negativamente para quem está dentro das residências.
“O Santo Antônio Além do Carmo é uma rua muito longa que foi criada para ser de baixa movimentação e que está recebendo um movimento muito grande. Qualquer som que for colocado ali vai criar uma amplificação porque a parede da casa da frente está muito próxima à outra”, afirma Ernesto Carvalho.
Para edificações antigas que não passaram por reformas ao longo dos anos, as vibrações sonoras podem até causar danos estruturais. “Existe um consenso entre os restauradores que os efeitos de vibrações sonoras, principalmente causados por equipamentos de som, podem representar risco”, explica Ernesto Carvalho.
O especialista admite que mais estudos ainda precisam ser realizados para que a dinâmica de como isso acontece seja melhor explicado. Por enquanto, ele garante que temporais possuem um poder muito maior de causar danos.
Imóveis valorizam e ultrapassam R$1 milhão no Santo Antônio
Moradores que estão dispostos a desapegar do valor sentimental de suas residências e resolvem se mudar, seja pelo incômodo causado pelos novos frequentadores ou não, fazem um bom negócio. Em poucos anos, a especulação imobiliária virou os olhos para o Santo Antônio Além do Carmo e as contruções valorizaram significativamente. É até difícil encontrar moradores que nunca tenham recebido propostas para terem seus imóveis transformados em estabelecimentos comerciais.
Na R. Direita, a principal, as casas de ao menos dos pavimentos, que possuem vista para a Baía de Todos-os-Santos, não são vendidas por menos de R$1 milhão. Do outro lado da rua, as construções custam entre R$700 mil e R$900 mil, a depender do estado de conservação.
Apesar do bom negócio e das mudanças do bairro, há quem não arrede o pé de jeito nenhum. É o caso da professora Carla Rúbia, 55, que mora em uma casa de três pavimentos no Santo Antônio desde que era adolescente. Sua mãe morou até o fim da vida nas redondezas, e a conexão emocional com o local é tamanha que dinheiro nenhum pode comprar.
“Aqui é um lugar onde viveram muitas famílias e muitos idosos. Muitas casas viraram comércio por vendagem, a família vendeu e passou adiante. Eu gosto da festa e do movimento, mas há aqueles que não gostam, isso é natural”, analisa.
*Com a orientação de Fernanda Varela.

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