O alardeado sucesso da atuação dos agentes, no entanto, tem um custo: o bairro de Tancredo Neves é um dos campeões em violência policial na Bahia, segundo um relatório da Iniciativa Negra por uma Política sobre Drogas, publicado em 2021. Uma das razões para isso é o fato de que o sistema usado para mapear e coletar dados da produtividade das polícias leva em conta apenas os crimes violentos que acontecem nas regiões – e excluem os praticados pelas próprias polícias, revelou ao Intercept um dos responsáveis por coletar os dados. 

No ano passado, um relatório do Instituto Fogo Cruzado em parceria com a Iniciativa Negra também destacou que os bairros pertencentes à 11ª AISP apresentam um alto índice de letalidade policial. Os dados, referentes ao período de 100 dias entre julho e outubro de 2022, mostram que pelo menos 18 pessoas foram mortas após intervenções policiais nos bairros da região. O bairro Arenoso, por exemplo, teve oito tiroteios, com seis mortes e um ferido; Sussuarana teve dois tiroteios com quatro mortes. Os demais bairros da AISP acumulam um total de oito mortes, aponta o relatório.

Os dados coletados pelo Monitoramento da Violência da Rede de Observatórios da Segurança, levantados entre os anos de 2019 e 2021, destacam cinco indicadores que refletem a espacialização das dinâmicas de violência policial: ações de policiamento; mortes em ações de policiamento; violências, abusos e excessos pelo Estado; linchamentos e chacinas. De acordo com a Rede, durante esse período houve 368 eventos violentos monitorados na AISP Tancredo Neves.

Manchas criminais

Conjuntamente com Sussuarana, Arenoso, Mata Escura, Cabula, Pernambués, Saramandaia, Engomadeira e outros bairros, Tancredo Neves está no que a Secretaria de Segurança Pública chama de “mancha de calor”, uma região no mapa que concentra uma maior densidade de crimes de violência letal intencional, segundo mapeamento realizado pelo Núcleo de Cartografia e Geoprocessamento da Secretaria de Segurança Pública da Bahia.

Mapa de crimes violentos letais intencionais coletados pelo Núcleo em 2020.

 

Fonte:

O núcleo, criado em 2013, funciona a partir de uma retroalimentação com as unidades policiais. As informações a serem georreferenciadas vêm dos boletins de ocorrência. O núcleo também atende a demandas apresentadas pelas unidades policiais para fins específicos – por exemplo, o fornecimento de mapas para o planejamento tático de ações. As informações são tratadas com tecnologias de geoprocessamento e estatística.

O foco principal é o acompanhamento de crimes violentos – homicídios, feminicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte. Outros delitos, como assaltos a instituições financeiras, transportes coletivos e roubos de veículos e de carga também são acompanhados.

No portal do sistema, coordenado pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia, está escrito que “há vários anos a criminalidade vem evoluindo nesses locais, tornando necessário que suas peculiaridades sejam entendidas mediante o uso das tecnologias disponíveis para que se possa, daí, apresentar planos para a otimização da investigação policial dos crimes ali praticados”. Para o governo estadual, o geoprocessamento criminal ajuda a “entender os fenômenos que contribuem para a violência e criminalidade”e a “avaliar de que forma o meio urbano influencia na criminalidade” na região.

A análise geográfica-criminal do núcleo é feita a partir das AISPs e também das Regiões Integradas de Segurança Pública, as RISPs, agrupamentos de municípios, distritos ou bairros, organizados de forma a “aumentar a eficácia policial”, segundo o decreto que regula o tema. Após o tratamento, análise e processo de georreferenciamento, os dados refinados são repassados para as instâncias superiores a partir de relatórios criminais que podem ser apresentados semanalmente, quinzenalmente ou até mensalmente, a depender da demanda.

De acordo com o núcleo, esses dados servem para orientar a atuação da segurança pública em operações policiais, incursões, instalação de bases comunitárias, bases móveis de policiamento ostensivo, itinerário de rondas e presença de contingente policial em geral, além do pagamento do Prêmio de Desempenho Policial, o PDP.

Violência policial de fora

E m 2017, o governo da Bahia criou o Prêmio de Desempenho Policial, um bônus que vai de R$ 557 a R$ 2,4 mil aos agentes que atuam nas áreas e regiões integradas que apresentaram uma redução de 6% ou mais dos números de crimes violentos. O reconhecimento com abono salarial foi instituído pelo Pacto pela Vida, programa basilar da atuação da segurança pública na Bahia, e tinha como objetivo ser um incentivo para que as instituições policiais se empenhassem em reduzir os números de crimes de violência letal intencional no estado.

É o Núcleo Cartografia e Processamento do estado o responsável por fornecer os dados que orientam o destino dos prêmios. Em 2021, uma das áreas premiadas foi a 11ª Área Integrada de Segurança Pública – que engloba o bairro de Tancredo Neves. No total, no ano passado, o governo anunciou um pagamento de R$ 10 milhões a serem distribuídos para 11,3 mil servidores que atuam nas áreas premiadas – entre eles, 9,2 mil policiais militares. 
 

‘Existe uma opção pela guerra. Apesar de ser justificada pela guerra às drogas’.

Questionada pelo Intercept sobre a ausência de violência policial na contabilização do prêmio, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia confirmou que “as mortes resultantes de resistência à atuação policial não são computadas para fins de pagamento”. De fato, não faria sentido premiar policiais violentos – mas, no mecanismo de premiação, não há sequer prejuízo para os agentes que abusam da truculência. “As mortes decorrentes de auto de resistência são classificadas no Código Penal como excludentes de ilicitude, por este motivo não são contabilizadas como homicídio”, justificou o órgão. 

A secretaria evoca o artigo 23 do Código Penal, o excludente de ilicitude, que determina algumas circunstâncias para excluir a culpabilidade – no caso de policiais, o estrito cumprimento de dever legal ou o exercício regular de direito. O mesmo Código Penal, no entanto, também prevê que eventuais excessos – intencionais ou não – podem ser punidos.

Um capitão da Polícia Militar da Bahia conversou com o Intercept na condição de anonimato. Ele afirmou que acredita que os indicadores que orientam o pagamento do prêmio não conseguem dar conta da realidade multifacetada da segurança pública. “A mancha somente não é suficiente para haver uma interpretação do fenômeno delitivo e suas causas no território. Me parece que a análise criminal precisa avançar, a ponto de entender, a partir de outros suportes de dados, de investigação e de inteligência, sobre a real causa dos fenômenos ali estabelecidos”.

Para o policial, os índices de crimes violentos letais intencionais não necessariamente traduzem um potencial de segurança ou insegurança do local. “São necessários outros suportes de dados para se interpretar, inclusive, a causa dos fenômenos, cuja mancha não consegue dar conta”.

Lógica de guerra

Denis é líder comunitário e morador do bairro de Sussuarana – também pertencente à 11ª AISP. De acordo com o jovem, a atuação da Polícia Militar no bairro é violenta e acompanha a lógica do racismo estrutural. Apesar de algumas tentativas de diálogo da instituição policial com o bairro, como ações sociais de distribuição de cestas básicas realizadas pelos agentes, a dinâmica de vigilância se mantém de forma ostensiva e truculenta. 

No ano passado, a Bahia registrou quase duas mortes por dia por intervenção policial. Em 2021, 100% dos mortos pela polícia eram negros. 

Denis ainda relata que já foi constrangido por uma das várias abordagens que ocorrem cotidianamente no bairro, pautadas pela lógica do racismo que determina o comportamento policial nos bairros de maioria negra e de periferia. 

“Eu estava no Uber, saindo de uma localidade de Sussuarana, quando o carro da polícia passou ao lado do meu carro. Eles fizeram a volta e pararam o nosso carro. Tava eu e mais duas pessoas pretas, e o motorista do Uber também era preto. Estávamos dentro do carro e ele foi parado, no meio da pista, no meio da principal, na frente de diversos pontos. Foi pedido que a gente saísse do carro com a mão na cabeça, porque éramos suspeitos e estávamos saindo de uma localidade suspeita”.

‘O prêmio de desempenho policial é um incentivo às práticas delitivas dentro das corporações.’

Para Dudu Ribeiro, porta-voz da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, a cartografia dos crimes tem fornecido subsídio para a diferenciação na atuação do estado nos territórios e para o incremento do processo de repressão e violência dos governos contra a população negra e periférica. 

“Em vez do gestor pensar ‘vou mandar então mais escolas, mais teatros, mais pistas de skates, mais praças de esportes’, ele pensa ‘vou mandar mais polícia, mais viatura’. Não é uma relação eficácia-eficiência, isso é uma opção do estado por manter uma lógica de guerra nos bairros periféricos e negros da cidade de Salvador e da Bahia como um todo”, analisou. 

Para o pesquisador, que também é coordenador da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia, a opção pela guerra em um determinado território é crucial para a compreensão dos fenômenos da violência naquela localidade. “Existe uma opção pela guerra. Apesar de ser justificada pela guerra às drogas – porque a polícia da Bahia, segundo o nosso monitoramento, é a que mais justifica suas operações baseada na ideia da guerra às drogas –, você não consegue captar o fenômeno por inteiro porque você tira uma parte fundamental, que é a ação provocada pelo estado naquele território. Como essa não entra na conta, a gente fica com uma mancha incompleta”.

O pesquisador avalia que o prêmio, da maneira como é aplicado, acaba incentivando a violência policial. Para ele, os policiais sabem quais lugares vão ser premiados e sabem que seu próprio homicídio não vai ser contabilizado – e isso pode afetar a taxa de forma artificial. “Se a gente estivesse falando de incentivos para atuações e possibilidades de polícia comunitária, de fato relacionada com o território, procurando soluções fora da lógica da violência, faria algum sentido. Mas não é isso. O prêmio de desempenho policial é um incentivo às práticas delitivas dentro das corporações”.

O capitão da polícia que conversou com o Intercept acredita que o prêmio “é um fator estimulante da prática, da operacionalidade”. Ele se preocupa, no entanto, quando o incentivo vem desatrelado de um indicador de qualidade da atividade policial.

Para o agente, é necessário que haja uma reflexão sobre os impactos dessas premiações em um contexto onde não há a construção de uma ética de trabalho e respeito aos direitos humanos que norteie a atuação policial. Para ele, o problema reside no fundamento político que rege a atuação policial. “Não importam os corpos que estão morrendo, não importam os corpos que são atingidos pela prática policial – isso é um fundamento político”.

Essa reportagem é fruto das Bolsas de Tecnoinvestigações para Repórteres Negros, uma iniciativa do Intercept em parceria com Conectas, Data Privacy Brasil e Data Labe.