quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

A QUEDA DE DONA VIVI



Não exatamente um bairro. Mais bem um velho povoado esquecido a navegar numa imensidão de concreto, asfalto e decibéis. Casario sem garagem nem elevador.
  De noite, cães e gatos, com ou sem dono, dormiam no passeio.

Era um casal de aposentados. Passava a vida vendo a vida passar na janela, cotovelos apoiados em almofadinhas. Num canto, Seu Eusébio, magro, tímido, sempre de terno surrado, sem cor. Falava pouco. A casa, herança do pai, português de Trás-os-Montes. Dona Deolinda, espalhafatosa, um mulheraço de cabelo amarelíssimo, ocupava quase todo o espaço. Falava muito. Falava mal de toda a vizinhança a vizinhança toda. Após três dedos de prosa, você continuava a caminho da quitanda já sabendo que ela iria lhe cobrir de cobras e lagartos, ratos e baratas.

Ao domingo de manhãzinha, de gravata e salto alto, compenetrados, iam à missa. Após comungarem, voltavam purificados e sorridentes. Nas trezenas de Santo Antônio de Padova que era de Lisboa, cantavam ladainhas em casa de conhecidos da igreja. Até se permitiam bebericar um cálice de licor de jenipapo, como quem faz uma coisa deliciosamente proibida. Nunca dois.

Em dezembro, a procissão de Santa Luzia. O casal já enfeitara a janela com flores de plástico e banner da ceguinha. No Natal, orgia de pisca-pisca, não faltando a estrela nesta casa onde jesus nenhum nunca nascera. Semana Santa, palmas do coqueiro do quintal. Carnaval, fachada fechada. Hermeticamente. Coisa de gente de pouca fé. Músicas pornográficas. Ousadias.

Do outro lado da rua, vivia Dona Vivi, uma viúva gaúcha de idade avançada. Toda manhã, molhava as plantinhas da sacada. Ouvia tangos. Recebia poucos familiares, velhos, com palavreado lá do Sul, e alguns amigos, colegas de quando trabalhava no tabelionato. Vez ou outra vernaculava com Deolinda.

Uma noite, ao querer ir ao banheiro sem ligar a luz, escorregou no capacho. Quebrou a perna direita e o cotovelo esquerdo. Ai! Quanta dor! Se arrastando pelo soalho, conseguiu abrir a janela e chamou uma, duas e mais vezes: “Seu Eusébio, Deolinda! ”. Silencio absoluto. Do outro lado da estreita rua, a fachada permaneceu muda. Só de manhã, ao chegar a empregada, foi chamada a ambulância. Anestesia, operação, gessos. Falatório na rua inteira. Coitada da Dona Vivi, sozinha, podia ter morrido.

A uns, Deolinda declarou nada ter ouvido. A outros que ouviu os apelos, mas pensou que era coisa de moleque. Com aquele sotaque de gaúcha? Por favor! Quando Vivi começou a andar e saiu para a rua, cumprimentou friamente o casal na janela. Fingiu que estava com pressa. Constrangimento geral. Deolinda, de boca fechada.

Duas semanas depois, às pressas e sem avisar ninguém, sorumbaticamente, o casal vendeu a casa, mudou de bairro. E de igreja.

 

 

 

 

 


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