SONIA ZAGHETTO
Um céu enevoado pairava sobre Brasília nas primeiras horas do dia 31 de agosto de 2016. Nada daqueles dias ensolarados que douram o cerrado: apenas a atmosfera sufocante e seca que traduzia as horas. Debaixo daquele céu, uma Esplanada deserta, melancólica, de ressaca antecipada. Sim, um dia histórico e de reflexão – exceto para o ativismo das redes sociais, onde o clima de terceira guerra mundial continuava de vento em popa.
Pouco depois das 11 horas, o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, iniciou a sessão do julgamento de Dilma Rousseff. Às 13h35, tudo estava consumado. Não era apenas o fim do governo Dilma. Chegava ao fim uma era que expôs com toda crueza nossa infantilidade brasileira, nosso despreparo perante os embates da vida, nossa dificuldade em debater com maturidade as questões essenciais da nação.
Não vou atribuir todos os males desta terra ao PT, já que nossa história e ethos nos mostram que malandragem, jeitinho, corrupção e populismo têm lugar garantido desde priscas eras. Entretanto, é inegável que a era petista ampliou o ódio e estimulou algumas práticas que hoje estão plenamente incorporadas ao modo de agir brasileiro. Somadas ao caráter natural de parte da população e ao advento das redes sociais, constituíram um pacote explosivo que resulta na atual face da nossa sociedade.
Nos últimos anos, fomos envenenados. Não foi abrupto, com a boca sendo aberta à força e o cálice tóxico derramado goela abaixo. Não, nada disso. Foi um envenenamento gradual – a cada dia uma gota amarga e cumulativa sendo oferecida com um sorriso nos lábios. Aos poucos o organismo desta pobre Nação recebeu, sem resistência, as gotículas que se converteram no oceano de raiva mal contida que agora nos ameaça. E quando nos demos conta, lá estávamos nós, ventre inchado de ódios, vomitando a mágoa que nos encharcava as vísceras e saía boca afora, violenta e feia.
Atordoados pelo veneno, feridos pelas marcas de um passado ditatorial recente que nos apavorava, muitos acreditaram nas ilusões que viam. E reverenciaram salvadores da pátria que tinham como único objeto de adoração o seu próprio projeto de poder. Nossa gente tão crédula abraçou os discursos demagógicos, os corruptos em pele de cordeiro, os exploradores da pobreza e os que, espertamente, os insuflavam a se odiarem mutuamente.
O modo de agir era sempre o mesmo: pegava-se um problema social pré-existente e, em vez de concentrar esforços em mecanismos positivos para eliminá-lo, açulava-se os brasileiros uns contra os outros. Em vez da educação que liberta, de ações positivas, do incentivo ao respeito mútuo, o país mergulhou na era da vingança induzida pelo debate superficial e por sofisticadas técnicas de marketing. Curiosamente, a prática contraria uma das mais famosas frases de um ídolo das esquerdas, o pedagogo Paulo Freire: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser oopressor”. Não deu outra: os oprimidos adoraram inverter os lugares.
E foi assim que causas nobres e dignas de atenção – como combate ao racismo, à pobreza, ao preconceito contra homossexuais e a violência contra as mulheres – tornou-se propriedade exclusiva de um grupo instalado no poder. Aos petistas e seus mais próximos aliados cabia o monopólio da indignação com qualquer problema de natureza social. Souberam manipular muito bem as mentes mais imaturas, dando a elas a sensação de que agora tinham voz e armas para lutar contra a opressão. Não é muito diferente das estratégias de colonização de cérebros utilizada pelo Estado Islâmico. Só mudam os resultados práticos. Quer transformar alguém num homem/mulher bomba real ou virtual? Convença-o que ele é vítima de um sistema, dê-lhe inimigos, faça-o concentrar seu ódio em um alvo específico, assegure a ele que está do lado certo e que suas estratégias – mesmo as mais estapafúrdias – são a maneira adequada de “lutar”.
O envenenamento de almas converteu os incautos em uma espécie de Peter Pan malcriado que adora expressar, de forma teatral, sua raiva e frustração. Simultaneamente desaprendemos os fundamentos da vida adulta, como o fato de que o sucesso é fruto de esforço, tempo e dedicação; que não há almoço grátis e que o Estado não é uma vaca de miraculosas tetas de onde brotam cédulas e moedas. Para essas mentes infantis, caiu perfeitamente bem um governo que se apresentava como o grande dizimador das desigualdades mediante atos mágicos, escorados em sloganscriativos. Seduzidos por memes e frases de efeito repetidos à exaustão, provocações pueris e gestos afetados, tornaram-se instrumentos dóceis de seus manipuladores. Sem jamais se dar conta de que são meros peões de um jogo muito complexo, milionário e perigoso.
Pensar tornou-se dispensável: as opiniões surgiam, prontinhas, no feed de notícias. Bastava curtir e reproduzir. Atos midiáticos tornaram-se um clássico instantâneo. A luta feminista agora tem como símbolos máximos um rastro de menstruação escorrendo pelas pernas, mamas desnudas e sovacos cabeludos exibidos como troféus – sem falar nos relatos rocambolescos que tomam as redes sociais e protestos simplistas contra cartazes de filmes de super herói. Sinceramente, só consigo ver isso como demonstração de rebeldia adolescente. Educar pela reflexão e exemplo ou trabalhar voluntariamente em instituições voltadas para dar suporte a mulheres vítimas de violência talvez não seja algo tão espetacular para colocar no Facebook. Além de que tudo isso consome muitas horas que se pode passar tentando arrumar curtidas e viralização nas redes sociais, não?
E o racismo? Reduziu-se a mantras do tipo “a casa grande surta quando a senzala aprende a ler”, que soa fortemente provocativa e atinge, indiscriminadamente, aos preconceituosos e aos que apoiam a causa embora não sejam diretamente afetados. Suspeito que Martin Luther King discordaria dessa abordagem tosca. Sem a tal educação libertadora, o que temos para hoje é um pessoal que adora se tornar opressor, repito. Foi o caso daqueles que ofenderam um rapaz branco (ó crime!) por haver cometido o pecado de “apropriação cultural” ao usar dreadlocks.
Os exageros da militância infantilizada causaram sérios danos a todas essas causas que merecem atenção. Despertaram antipatia e empurraram muita gente boa direto para os braços de políticos rudes e gurus falastrões, vaidosos e sem o menor bom senso, cuja única vantagem é ter uma suposta coragem de combater os excessos do politicamente correto. Sim, estou dizendo a todos esses guerreiros da justiça social que eles mesmos ajudaram a turbinar os seguidores fanáticos de seus adversários. É o preço que se paga por optar pelo caminho da superficialidade.
No Brasil de hoje já quase não há espaço para o caminho do meio, para os que pensam com calma. É a era dos extremos, na qual se cola na testa alheia, com facilidade e quase displicência, rótulos de todo tipo: reacionário, progressista, retrógrado, opressor, macho indócil, feminazi, coxinhas, petralhas, etc. A criatividade é imensa; a maturidade, não.
Simultaneamente, perdemos nesta terra a delicadeza do gesto, a elegância da expressão, o respeito à opinião diferente e a arte de argumentar. Nas redes sociais, tornou-se cada vez mais natural cuspir na face alheia os mais cabeludos palavrões e as mais duras agressões. Aos poucos, a Nação trouxe para a vida real as escarradas virtuais, a impaciência generalizada e esse ódio cada vez mais onipresente.
Hoje somos um país de crianças mimadas e mal-educadas, que reagem com histeria à menor contrariedade. Infantes desacostumados ao que dá estofo às civilizações: estudo, trabalho, altos valores.
Desaparece dentre nós o hábito da leitura mais longa. Qualquer texto de mais de cinco linhas torna-se “textão” e gera a inevitável e quase elogiada preguiça. Preguiça que, aliás, também se tem diante do exame da argumentação alheia. Tudo é cansativo. Sem o hábito da leitura, do estudo sério e da reflexão, torna-se compreensível a adesão ávida às armadilhas da falsa retórica.
Ah, pátria minha, que compaixão me toma ao pensar em ti. Uma terra tão rica, cuja fertilidade Pero Vaz atestou logo na chegada: em se plantando, tudo dá… Aqui está a maior jazida mineral do planeta, opulentos mananciais de água doce, biomas extraordinários, clima ameno, cenários de sonho. O que nos falta para ser grandes? Maturidade. Apenas maturidade em vários aspectos.
Maturidade para entender que não é o rótulo de “direita” ou “esquerda” que dá salvo conduto moral e atestado de bons sentimentos.
Maturidade para escolher governantes sem paixão cega.
Maturidade para retirá-los do poder quando violarem a ética ou malbaratarem os bens públicos. Sem traumas, sem guerras civis, sem a morte das amizades.
Maturidade para aceitar as regras do jogo democrático quando elas se voltarem contra interesses e desejos pessoais.
Maturidade para compreender que, no grande jogo político, há profundas manipulações mas cabe a cada um de nós, votantes, a decisão de não ser marionetes de interesses inconfessáveis. E este é um poder imenso.
Maturidade para aprender a respeitar regras e leis.
Maturidade para entender que são valores essenciais de uma nação o trabalho árduo, a boa educação e a honestidade.
Maturidade para compreender que a excelência deve ser buscada em grandes obras e pequenos detalhes. Sempre.
Maturidade para tirar os olhos exclusivamente do umbigo e saber colaborar para o bem comum, evitando sobrecarregar o organismo social. E isso vai de lixo jogado na rua à corrupção nas altas esferas.
Maturidade para entender o mais que óbvio: no Brasil tudo está por fazer e cada um tem um papel decisivo nessa tarefa.
Sei que tudo isso soa como utopia e até platitude, mas ainda cultivo na alma uma grande esperança: a de que essa época de ódios acabe por cansar a nossa gente. Que seja como aqueles relacionamentos tumultuados, que se consomem de intensa paixão por alguns meses e depois se deixam aquietar, vencidos pela intensidade dos sentimentos que ninguém é capaz de suportar por longo tempo.
Que venha esse tempo de calmaria, onde se reaprenderá a viver de verdade.
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