quarta-feira, 28 de setembro de 2016

PORQUE EU GOSTO DE ABIU

ANA MARIA
Neste domingo, 8 de fevereiro de 2009, em pleno século 21, leio na Folha de São Paulo, numa pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo, que 58% dos brasileiros consideram homossexualidade um pecado e 29% a consideram uma doença!
Eu tinha 10 e ainda me lembro do espanto que fiquei diante da pergunta feita por papai: por que você gosta de abiu? Ele sempre pronto a me esclarecer sobre qualquer dúvida estava respondendo à minha pergunta com outra, sem pé nem cabeça. Eu adorava acompanhar a conversa dos adultos durante as refeições. Era tudo incrivelmente fascinante e eu ansiava pelo dia em que também seria capaz falar como eles. Nem sempre entendia o que diziam e isto me obrigava a pedir esclarecimentos a papai. Em segredo, é claro, para que não se dessem conta de minha ignorância. Naquele dia não foi diferente. Falavam sobre um homem que eu não conhecia quando um tio referiu-se a esta pessoa como “efeminado”. Eu nunca havia escutado a palavra muito menos sabia o sentido. Terminado o almoço corri para papai: o que é efeminado? E foi ai que, absurdamente, ele me perguntou: por que você gosta de abiu? Lembro-me que apenas disse um sei lá. Porque gosto, ora! Mas o que eu quero saber é... E ele me cortou: eu sei o que você quer saber e o seu gostar tanto de abiu tem tudo a ver com isto.
Não existe outro jeito de contar esta história sem reproduzir o diálogo, ainda intacto em minha memória:
 Você nasceu com alguma coisa dentro que faz você gostar de abiu. Outras pessoas não. Diga lá: todo mundo gosta de abiu?
 Tem gente que não. Lá no Rio (estávamos no sítio, em Miguel Pereira) tem gente que nem sabe que existe. Você mesmo não gosta!
 Pois é. São poucas as pessoas que conhecem e gostam de abiu. Será que isso é errado ou faz você uma pessoa diferente porque gosta?
 Que maluquice é essa, papai! Mas tem uma amiga me acha diferente porque eu não gosto de maçã. A Gerusa!
 E você se acha diferente?
 Todo mundo gosta de maçã. Vai ver eu sou diferente, né?
 E é mesmo! Efeminado é um homem diferente que nasce gostando de namorar homens ao invés de mulheres. Existem também mulheres que nascem gostando de mulheres ao invés de gostar de homens. Ainda não se conseguiu explicar por que. Do mesmo modo que ainda não se descobriu porque você gosta de abiu e não gosta de maçã. Mas um dia a ciência vai esclarecer isto.
 Mas isto é muito mais esquisito que não gostar de maçã, Papai!
 Aprenda a usar as palavras certas! Já expliquei a você que o sentido das palavras é muito importante. Não é esquisito, coisa nenhuma. Só não é comum.
 E por que eu nunca vi um homem assim? Nem mulher.
 Pensa você. Claro que já viu. Mas eles ou elas não gostam muito de mostrar isto porque tem gente que acha esquisito, como você mesma falou agora, viu? Ninguém gosta que os outros digam que são esquisitos, mesmo quando não são, você não acha? .
 Não acho, não. Eu tô pouco ligando se a Gerusa achar que eu sou esquisita porque não gosto de maçã.
 Ah! Mas maçã não é ligada a sexo, minha filha. Lembra que já expliquei isto a você? A maioria das pessoas mete os pés pelas mãos quando falam de sexo. Acham um assunto complicado, mas você já sabe que não é.
 Ah, sei! É um assunto sério e não é pra gracinhas, não é? Você disse que eu conheço alguém efeminado. Quem é?
 Conhece e gosta muito: Oscar Wilde. Você adorou ler O Príncipe Feliz. É lindo não é? Portanto, mocinha, se um dia você perceber alguma pessoa assim, trata de não fazer gracinhas, como você diz, tá? Não deve ter sido esta a palavra que eu usei quando conversamos. Mas o sentido é este mesmo. Mas nós vamos conversar ainda muito sobre estas pessoas diferentes.
Isto se passou há exatamente há 69 anos atrás. Pelas conversas esclarecedoras que se seguiram, aspectos históricos, científicos, morais, éticos e religiosos foram adaptados aos meus ouvidos de criança. E me vi livre do preconceito. Mas não do preconceito dirigido a mim. Fui, na infância e adolescência várias vezes marginalizada por “saber e falar o que não devia”. Com tristeza, percebo que a pergunta que por vezes me fazem (como é que uma senhora de sua idade pode pensar assim?) poderia ser formulada por 58% dos brasileiros! É espantoso perceber que o extraordinário avanço da ciência e da tecnologia que ocorreu nestes 69 anos, em nada contribuiu para tornar o homem mais esclarecido, não é?

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