segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O ESTRANHO DESTOMBAMENTO

 O estranho ‘destombamento’ do Solar do Visconde de São Lourenço, no Centro, pelo IPHAN

Quintino Gomes Freire

O imóvel, na esquina da Riachuelo com a Inválidos, era tombado desde 1938 e tem grande relevância histórica, tendo sido construído no século XVIII. Um processo administrativo do IPHAN ocasionou seu destombamento diretamente pela Presidente do IPHAN, publicado no Diário Oficial a 25/01/2022. Especialistas temem outros "destombamentos".


Algo curioso na República Brasileira? O prédio mais azarado do Rio é o Solar do Visconde de São Lourenço; incendiado, desabado, convertido em estacionamento, e agora... "destombado" em Brasília sem ouvir o Conselho Consultivo do IPHAN. Operários estão no local, realizando o que parece serem demolições.

Na rua dos Inválidos, número 193, fica o que restou de um dos imóveis mais significativos de nosso período colonial, bem na esquina da rua do Riachuelo. O belo prédio, que foi residência do Visconde cujo nome carrega, tinha três andares e ocupa um terreno de aproximadamente 1.200m2 em bom ponto do Centro do Rio. Tem arquitetura bem semelhante ao Paço Imperial, com as molduras das janelas em cantarias de pedra, e sacadinhas, como aquela em que Dom Pedro I disse que ficava. Serviu de colégio e Cortiço, com 68 quartos e 500 moradores ao mesmo tempo. Vinha sendo usado há tempos como um estacionamento, após um incêndio que destruiu-o parcialmente nos anos 90, deixando, porém, boa parte de sua fachada de pé.

O palacete colonial foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (órgão Federal) em 1938, sendo um de seus primeiros tombamentos após o nascimento da instituição em 1934, justamente pela sua relevante importância histórica. Além disso, é considerado “preservado” pelo decreto 11.883/1992, da Prefeitura do Rio, que criou a APAC da Cruz Vermelha. Só que, agora, 84 anos depois, o imóvel – que vem, segundo corretores, sendo ofertado para venda por 5 milhões de reais – teve seu tombamento cancelado pelo órgão federal que originalmente o tombara, como consequência de um processo administrativo iniciado em 2014. Segundo informações obtidas junto a servidores do IPHAN o destombamento teria ocorrido em Brasília, sem ser levada ao Conselho Consultivo, por ação direta da presidência do órgão. Existe lei específica para ‘destombar’ bens pelo governo nacional: é o Decreto Lei Federal 3866/1941. Segundo ela, caberia ao próprio Presidente da República fazê-lo.

Um ato considerado por especialistas como inexplicável; como razão alegada para cancelar o tombamento de um dos imóveis mais significativos do período ainda existentes, o IPHAN alegou “falta de materialidade“. Leia-se, o órgão entende que o imóvel não existe mais, apesar de sua fachada estar lá, com 2 pavimentos de pé direito altíssimo, ocupando a esquina de duas das ruas mais movimentadas da Lapa com suas paredes espessas. De fato, o interior ruiu-se, assim como o último andar. Mas, segundo arquitetos especializados, o restauro da fachada é simples, tendo em vista sua fachada reta e a quantidade de fotografias que existem reproduzindo a frente do imóvel. Hoje, o defensor do patrimônio histórico Marconi Andrade fotografou e postou em grupos de Facebook operários demolindo parte do imóvel, sem, todavia, a existência de placa de obra, exigência da Prefeitura Municipal. Ora… Se estão demolindo….é porque há algo a ser demolido. Ninguém faz a demolição de um terreno vazio. Então há materialidade, apesar de estarem querendo se livrar dela rapidamente!








Além disso, uma das mais infantis idéias de quem sempre quis – e não conseguiu – burlar um tombamento de bem cultural sempre foi a de que se “deixar cair” o desabamento do imóvel vai acabar com a restrição. Claro que não. Se cair, tem que reconstruir exatamente como era, e ainda está sujeito a multas e problemas judiciais. Quer dizer… Se o executivo federal não sair destombando imóveis a torto e a direito, fazendo anos e anos de trabalho de especialistas virarem pó, assim como os prédios e a cultura brasileiros. Uma matéria do Jornal O Globo dos anos 80 tratou da hipótese de que seus proprietários estariam – à época – intencionalmente tentando incendiar a edificação, para “receber o dinheiro do seguro” segundo moradores da edificação, que relatam até mesmo a colocação de baldes com gasolina dentro do imóvel. Verdade ou mentira, o mesmo acabou sendo incendiado de vez nos anos 90. Uma coincidência infeliz, no mínimo.

O autor da premiação ao proprietário (no mínimo) relapso é o signatário de um parecer do IPHAN Adler Homero Fonseca de Castro, “coordenador geral de identificação e reconhecimento (sic)” do órgão. Historiador – não arquiteto – e especialista em fortificações militares e armamentos históricos. É ele que afirma , mesmo com a fachada do imóvel presente no local, com todas as as características, que houve “o perecimento do bem”. Falta de viagens a Pompéia e Stonehenge? Mas e se houver indícios de perecimento intencional? Saudoso dos baldes de gasolina supostamente espalhados pelo imóvel, quando ainda estava de pé, gerando renda a seus proprietários(reportagem de O Globo, acima linkada)? Castro junta em seu laudo no processo a foto da única face da fachada que desabou inteiramente para simbolizar o imóvel, hoje.

Júlio Reis, do conceituado site Urbe Carioca, escreveu em 2015 sobre o prédio, num artigo que dedicou exclusivamente à edificação oitocentista: “O que mais nos deixa indignados é que essa construção onde hoje funciona um estacionamento, após a saída das famílias que nela habitavam, sofreu permanentemente atos de vandalismo e destruição intencional. Aos poucos e devagar as paredes internas desmoronaram misteriosamente, uma a uma até não restar nada como se fossem de papel. Independente do clima – chuvoso ou não – vizinhos ouviam marretadas e o barulho de pessoas trabalhando na demolição do prédio sem serem incomodados pelo poder público ou qualquer representante do patrimônio. Logo depois o gradil em ferro do século XVIII-XIX foi completamente removido, além de os velhos portais de madeira e as telhas do século XVIII.

Um especialista ouvido pelo Diário do Rio se mostrou preocupado. Pedindo para não ter seu nome revelado, disse: “Não tenho palavras para manifestar minha perplexidade para um ato desta natureza, pois, provavelmente, irá provocar uma provável avalanche de demolições de Bens Tombados.” Outro, ligado ao IPHAN, afirmou: “O destombamento foi no último 25/01. Absurdo. Se for assim não sobrará nada.” O processo administrativo que resultou no cancelamento do tombamento é o de número 01500.003970/2014-01.

De fato, o Solar é tão famoso e significativo que é citado em diversas obras de diversos autores, e até mesmo é utilizado, com frequência, como referência por faculdades de arquitetura. Em 2016, os então estudantes de arquitetura Lucas Davidson e Thuany Coutinho fizeram um projeto para a faculdade em que propunham sua restauração, demonstrando a possibilidade de fazê-lo, e instituir um novo uso para o imponente palacete. 

O projeto está disponível aqui.

https://diariodorio.com/o-estranho-destombamento-do-solar-do-visconde-de-sao-lourenco-no-centro-pelo-iphan/

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