Donos da praia: duas leis em discussão podem privatizar litoral brasileiro
Morei por alguns meses nos Estados Unidos. Por lá, o que mais me impressionou era que eu não podia ir a qualquer praia que eu quisesse. Apenas em "praias públicas".
Feito uma brasileira que adora o mar, todo o conceito de praias particulares me parecia uma ideia ruim. Isso se confirmou quando percebi que alguns dos mais belos cantos que visitei só puderam ser acessados por meio de amigos e conhecidos, que literalmente tiveram que abrir portas e portões para eu chegar até o mar. A ideia de ter grandes trechos do litoral privatizados, contudo, não é uma invenção americana, e vários outros países, como a Itália, Bali e Egito, têm políticas parecidas.
Entendo que uma das coisas mais bonitas das praias brasileiras é exaltar nossa diversidade: elas são, ao menos em teoria, acessíveis a todos, e a gente pode ver as diferentes culturas dividindo uma mesma faixa de areia. Na prática, sabemos que nem sempre é fácil assim.
Mas por mais que algumas faixas de areia tenham seu acesso dificultado por aqueles que não querem compartilhá-las, a Constituição de 1988 garante que "as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar" (Artigo 10 da Lei nº 7.661). Só que esse direito também corre o risco de virar privilégio, e a praia que era pública, virar privada.
Enquanto a gente se preocupa em conseguir comprar comida e gasolina em meio à alta dos preços, tramitam projetos de leis e emendas constitucionais que fazem parte de um claro programa de governo com foco na privatização de bens.
Praia não pode ser privilégio Atualmente, toda a ideia de privatizar as praias se mistura no juridiquês de duas propostas: o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 39, que acaba com os chamados terrenos de marinha, e o Projeto de Lei 4444 de 2021.
Os terrenos de marinha são as áreas situadas na zona costeira, margens de rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés, como manguezais e ilhas costeiras e oceânicas. Essas áreas muitas vezes estão ocupadas por propriedades particulares, que por estarem em um terreno público pagam impostos ao governo.
O que a PEC parece propor é uma simples mudança de transferência de propriedade dessas terras do governo federal para estados e municípios. Mas, na verdade, essa mudança permitiria que esses estados e municípios possam privatizar, edificar, degradar, aterrar ou simplesmente sumir com essas áreas. E essa ideia já foi aprovada pela Câmara dos Deputados e segue agora para o Senado, podendo ser votada a qualquer momento - para acompanhar, pesquise sobre a PEC 03/2022 ou clique aqui.
Outra mudança nas leis brasileiras que pode levar à privatização de praias é o projeto de lei 4444/2021 que, em meio a ações necessárias para o controle dos imóveis federais, propõe que até da faixa de areia de cada município possa ser Zona Especial de Uso Turístico — uma categoria que na prática abre brechas para restringir o acesso a pessoas não autorizadas. Nessas zonas especiais poderão ser construídos hotéis e parques privados, por exemplo, se autorizados pelo Ministério do Turismo.
Em outras palavras, um resort que entrasse num bom acordo com o poder público poderia garantir uma praia particular, independente da população tradicional da região.
Estes são espaços muito importantes não apenas para o lazer, mas para a obtenção de alimentos e reprodução de animais marinhos. E para a nossa própria proteção contra a subida do nível do mar e a erosão costeira.
Essa proteção fornecida pelos ambientes costeiros será ainda mais essencial nas próximas décadas, com o agravamento da crise climática e seus diversos desafios. O livro Panorama da Erosão Costeira no Brasil, publicado em 2018 pelo Ministério do Meio Ambiente, já revela que 60 a 80% das regiões Norte e parte do Nordeste do país estão sob processo erosivo.
Nos litorais Sudeste e Sul, 20% do litoral está diminuindo.
Enquanto todos os alertas apontam para a crise climática, será mesmo que é hora de passar para mãos particulares o nosso principal sistema de proteção?
Acompanhar o desmonte ambiental está difícil, pois são muitas frentes sob ataque ao mesmo tempo: PL do Veneno, da grilagem, da mineração em terras indígenas, mas se você está disposto(a/e) a fazer esse esforço, seguem algumas dicas:
Para assuntos marinhos vale acompanhar o GT Mar: https://painelmar.com.br/pautas-no-radar-do-gt-mar/.
A frente parlamentar ambientalista criou um observatório de leis: https://www.frenteambientalista.com/observatorio-de-leis/.
E a dica mais importante e difícil de todas: converse com amigos e familiares à sua volta.
Este ano temos a chance de começar a reconstrução, ou, simplesmente, abrir mão da prainha no final de semana.
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