Salvador faz aniversário dois dias depois do Dia do Teatro. Já houve época em que no mês de aniversário da cidade fez-se uma programação diversa, com pequenas temporadas teatrais, além de outras linguagens, como um mês comemorativo.
O Museu de Arte Popular de Recife (MAP), inaugurado em 1955, foi um dos primeiros museus dedicados ao gênero no país. Foi organizado e idealizado pelo advogado e colecionador recifense Abelardo Rodrigues (1908 - 1971) e projetado pelo arquiteto carioca Acácio Gil Borsoi (1924 - 2009). Embora extinto, o projeto do museu foi uma adaptação de uma antiga escola infantil em um espaço com características modernas para a exposição de arte popular, localizado na entrada do Parque Zoobotânico de Dois Irmãos. Os únicos registros deste espaço foram realizados pelo fotógrafo francês Marcel Gautherot (1910 - 1996) no ano de inauguração do museu. Apesar das suas singularidades, estes três personagens estavam especialmente interessados no aspecto popular das narrativas modernas, e por esse motivo, é importante analisar as perspectivas que contribuíram no interesse dos usos dessa noção.
O popular é uma noção incerta, historicamente utilizada por diversos segmentos, com interesses e objetivos variados, que de acordo com Martha Abreu, esteve “quase sempre envolvida com juízos de valor, idealizações, homogeneizações e disputas teóricas e políticas.” (Abreu, 2003) Pela característica desta noção, que mobiliza contextos específicos, é que se faz necessário perceber como o termo foi utilizado em cada época. Nesse sentido, Hélder Viana afirma que a análise não deve pressupor que o objeto denominado popular contém em si sua própria identidade, pois são sobretudo, construções de parcelas da sociedade às quais este termo se opõe, mesmo que muitas vezes de maneira híbrida. Segundo Viana, “o estudo do popular não pode restringir-se ao inventário de produtos culturais, deve antes, trabalhar com relações sociais e modalidades de apropriação.” (Viana, 2002)
No Brasil, o popular foi uma noção central para diversos grupos que estavam preocupados em construir, a partir da década de 1920, a identidade brasileira. Por mais particulares que fossem os discursos que estavam em disputa naquele período, todos trabalhavam em alguma medida com o termo, seja por oposição ou valorização. Nesse sentido, as diferenças regionais do país marcaram alianças e rompimentos dentro da narrativa que vinha sendo construída - que privilegiava certa produção como erudita e outra como popular. A superação destas distâncias regionais, considerada por uns, sinal de atraso e obstáculo para atualização do país, era para outros, detentoras da verdadeira identidade. (Chuva, 2009) Os regionalismos, advindos desta segunda perspectiva, desenharam a linha de pensamento de alguns intelectuais modernos, entre eles os regionalistas ligados a Gilberto Freyre, Plínio Salgado, Ronald de Carvalho, e o chamado grupo verde e amarelo.
Os regionalismos são sempre pensados como um entrave a esse processo, embora só se acentuam à medida que a constituição da nação não era um processo neutro, mas um processo politicamente orientado, que significava a hegemonia de uns espaços sobre os outros. — Durval Muniz de Albuquerque Júnior. A invenção do Nordeste e outras artes, 2011.
De acordo com Durval Muniz de Albuquerque, durante o século XX, o olhar para estas outras regiões é construído a partir de referências próprias, e transforma o lugar de onde se fala no centro do país. Ainda que Albuquerque não esteja se referindo direta e unicamente à construção da narrativa paulista, o autor evidencia o exercício de observação distante às regiões do ponto de onde o discurso era promovido. O impulso destas narrativas, de acordo com Albuquerque, aconteciam por meio de publicações de viagens de caráter expedicionário em jornais, que tinham como intuito conhecer realmente o país.
O próprio desenvolvimento da imprensa e a curiosidade nacionalista de conhecer “realmente” o país que fazem com que os jornais encham-se de notas de viagem a uma ou outra área do país, desde a década de vinte até a de quarenta. O que chama a atenção são exatamente os costumes “bizarros e simpáticos” do Norte ou “estrangeiros e arrivistas” do Sul. — Durval Muniz de Albuquerque Júnior. A invenção do Nordeste e outras artes, 2011.
Por meio do levantamento de documentos históricos presentes no Museu do Homem do Nordeste (Muhne) no Recife realizada dentro do período desta pesquisa, foi possível identificar correspondências e pedidos de pagamentos para viajantes que se deslocavam até feiras populares rurais no sertão, com o objetivo de encontrar e adquirir peças de artesãos para compor o acervo do MAP. Os documentos encontrados atestam pagamentos de viagens realizadas para Caruaru (PE), Tracunhaém (PE), São Luís (MA), Belém (PA) e Goiânia (GO) em 1967, à serviço do MAP.
Recife (1940 - 1960)
De acordo com Juliano Pereira, o período entre ditaduras no Brasil (1945-1964), é marcado por incentivos industriais e uma rápida expansão urbana, que impulsionou desenvolvimentos tanto na esfera política, quanto na intelectual e artística. O desejo de modernização, estimulado por discursos nacional-desenvolvimentistas levantados pelos presidentes da época - particularidades à parte - pode ser observado em diversos movimentos, em especial os que ocorreram nas capitais dos estados.
Este é o caso de Recife, que é palco de manifestações progressistas, com experimentações, rupturas e construções no campo cultural, artístico, social e político. Movimentos como a Sociedade de Arte Moderna de Recife (SMAR) criada em 1948 - momento de ruptura com a Escola de Belas Artes de Recife - , o Ateliê Coletivo em 1958 e o Movimento de Cultura Popular (MPC) em 1960, foram alguns deles. Estes movimentos priorizavam, sobretudo, valorizar características e aspectos populares locais.
Em 1955, uma grande coalizão de esquerda conhecida como Frente do Recife, conquistou a candidatura do prefeito Pelópidas Silveira, dedicado e envolvido com as camadas populares da cultura, realizando uma política muito próxima do povo. Seu sucessor, Miguel Arraes, foi eleito em 1960 e realizou diversos projetos ligados à cultura popular, como a institucionalização do MCP. O projeto, criado por Abelardo da Hora em 1958, se concretizou em 1961 com a prefeitura de Arraes. Personalidades como Ariano Suassuna, Abelardo da Hora, Paulo Freire e Francisco Brennand faziam parte do grupo que organizava o MCP.
Ariano Suassuna e Abelardo da Hora estavam também envolvidos com atividades no MAP. Durante a prefeitura de Arraes, noções como raízes populares e criar brasileiramente eram comuns. Em 1963, Arraes foi eleito governador de Pernambuco, e pretendeu elevar o MCP a nível estadual. É a partir deste momento que impulsionados pelos planos do MCP, significativos incentivos para habitação e moradia popular se iniciam. Um dos projetos mais experimentais na área de habitação desse período é o Cajueiro Seco (1963), idealizado também por Acácio Gil Borsoi, arquiteto carioca atuante do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e professor da Universidade de Arquitetura do Recife. Apesar do esforço e efervescência de políticas progressistas, com importantes projetos sociais, tudo é interrompido com o golpe militar de 1964.
Considerando esta conjuntura de eventos, pode-se constatar que o MAP fez parte, direta ou indiretamente, de um momento em que o popular - especialmente nos estados nordestinos - estava sendo discutido ativamente, penetrando diversos - se não todos - debates públicos e aspectos sociais. Cabe ressaltar, que mesmo após o golpe de 1964, o museu continuou com suas atividades, criando cursos de artes populares, exposições e expandindo sua coleção. Por esse motivo, pode-se entender que o MAP, diferentemente dos outros projetos que estavam em curso antes do golpe, é a proposta de um espaço que não necessariamente atende às reivindicações políticas e artísticas citadas, mas sim a um entusiasmo particular.
O museu
Para a análise do espaço do edifício do museu, é importante localizar espacialmente as fotografias por meio da planta de adaptação do edifício do MAP realizada por Acácio Gil Borsoi, onde é possível identificar três espaços expositivos: duas salas nas laterais da entrada/secretária e um salão principal aos fundos. (Figura 1)
Com base na análise crítica dos registros realizados pelo fotógrafo, é possível afirmar que as duas salas laterais desenhadas na planta são respectivamente, as figuras 2 e 3. Em ambas as salas existe um suporte, formado por duas hastes de metal tubular que sustentam quatro plataformas de madeira horizontais no centro. As estantes de madeira são posicionadas de maneira alternada nas hastes. Este elemento é vazado, possibilitando a visão completa de todos os lados dos objetos expostos. Na primeira fotografia (figura 2), objetos utilitários de cerâmica como pratos, vasos e cumbucas estão expostos na prateleira central. Já na segunda (figura 3), existem esculturas de ex-votos.
No teto, centenas de cordas - aparentemente de fibra natural - esticadas e tensionadas bem próximas uma das outras atravessam todo o espaço adentrando as paredes. As cordas produzem um ritmo de cheios e vazios e texturas. Segundo Borsoi, as cordas cumprem a função de recriar o pé-direito nas salas, dando uma nova proporção e escala por meio de materiais locais.
A iluminação provém de luminárias industriais em cone, suportadas também por duas hastes metálicas horizontais, uma de cada lado da prateleira de exposição. Elas estão posicionadas no teto, logo abaixo das cordas. As luminárias são dispostas alternadamente nas hastes, uma hora direcionada para a parede clara, outra hora para a prateleira. Por estarem iluminando de cima um objeto no centro, acabam projetando sombras nas paredes, onde de um lado encontra-se a pintura Noivado no Copiar (1943) de Lula Cardoso Ayres, e no outro uma sequência de molduras ligeiramente inclinadas.
Na figura 2, na extremidade oposta à janela, a parede é de cor escura com um recorte retangular fundo e de cor mais clara que a parede, que serve como espaço expositivo. Nele, a iluminação é interna e os objetos estão protegidos por uma película de vidro.
Na terceira sala (figura 4), a fotografia é feita na entrada do ambiente, e podemos perceber que a área é mais ampla e iluminada do que a sala anterior. Logo, do lado esquerdo mais próximo do fotógrafo, existe um vaso grande de cerâmica com ornamentos, sustentado por uma estrutura metálica e do lado direito um banco de madeira, que vemos parcialmente.
O elemento que mais chama a atenção é um longo painel branco, posicionado na lateral esquerda do fotógrafo, um pouco acima do chão e abaixo do teto. Apesar de na planta original este painel estar desenhado no centro, na fotografia aparece deslocado para a lateral. Nele estão fixados alguns objetos como esculturas ou bonecos de cavalos, colares, cestos de palha, e outros, todos arranjados espaçosamente. No centro da exposição, existe uma mesa baixa onde pequenos bonecos estão dispostos.
Ao fundo da sala, cortinas de palha cobrem as janelas, interrompendo o contato com o exterior e reforçando a atenção para o espaço interno do museu. Dessa maneira, mascaram as características da arquitetura pré-existente do edifício e criam um novo ambiente com aspectos modernos, não por meio de materiais industriais, mas através de um elemento regional e artesanal, a palha trançada. Em frente a cortina, existe um pequeno oratório apoiado em um cubo claro, um pouco maior que a base do santuário, e de altura mediana. A iluminação parte de seis pontos de luz, que seguem o mesmo formato de módulo retangular do forro da cobertura. Diferente do outro espaço, não há projeção de sombras, pois a iluminação uniformiza o ambiente.
Para os espaços expositivos do MAP, é curioso notar a ausência de corpos nas salas, e a falta de relação de escala humana com a arquitetura. O único momento em que aparece uma figura humana é no lado externo do MAP (figura 5), na qual está quem se acredita ser o diretor do museu, Abelardo Rodrigues, ao lado de uma grande escultura denominada de “Zebu” de um artista popular desconhecido para esta pesquisa; e ao lado (figura 6), uma escultura do artista Abelardo Da Hora, “Vendedor de Pirulitos” (ano desconhecido).
A partir desta análise, é possível identificar as estratégias desenhadas por Borsoi para um dos primeiros museus de arte popular do país. Os recursos materiais do projeto criam a todo momento um diálogo muito evidente com o moderno e o regional, o popular e o considerado erudito. O projeto de adaptação do espaço é construído através de soluções locais, por meio de materialidades que conversam com os objetos expostos. A cortina de sisal, as cordas de fibra natural, as luminárias industriais em cone, a modulação do piso e os longos painéis tensionam esta aproximação do museu e evidenciam o esforço de projetar um espaço que respondesse, por meio destas materialidades, à construção de uma narrativa moderna interessada no aspecto popular da cultura.
__________
O ensaio aqui exposto é fruto da iniciação científica com bolsa da Associação Escola da Cidade intitulada “Expografia modernista para uma coleção popular: um estudo sobre a espacialidade e as circunstâncias de fundação do Museu de Arte Popular do Recife (1955)” com orientação do professor Ms. Yuri Fomin Quevedo.
Referências Bibliográficas
- ABREU, Martha e SOIHET, Rachel – Ensino de História, Conceitos, Temáticas e Metodologias. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
- ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. - 5.ed. - São Paulo: Cortez, 2011.
- CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil - anos 1930 e 1940. Tese de Doutorado em História na Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, RJ. 2009.
- GAUTHEROT, Marcel. Museu de Arte Popular. 1955. Acervo digital Instituto Moreira Salles. Disponível em IMS. Acesso em: 29, ago. 2020.
- PEREIRA, Juliano. A ação cultural de Lina Bo Bardi na Bahia e no Nordeste (1958-1964). Editora Universidade Federal de Uberlândia (EduFu). Uberlândia, MG. 2008.
- REAL, Regina. O Museu Ideal, 1958. Belo Horizonte, BH.
- VIANA, Hélder. Os usos do popular: coleções, museus e identidades, na Bahia e em Pernambuco, do início do século a década de 1950. 2002. Dissertação (Doutorado em História Social, apresentado à FFLCH/USP).