Nos penetrais da Biblioteca Nacional
Foi em 1982 que comecei minha caminhada pelos penetrais da Biblioteca. Chama-se "penetrais", assim, sempre no plural, aos corredores intermediários entre faces de estantes. Há sempre um corredor central; penetrais são suas ramificações.
Eu frequentava o “sótão” da BN – o armazém com pé direito de dois metros, no ponto mais alto do prédio, junto à claraboia do depósito de livros. Ali ficava um denominado “acervo histórico” que foi objeto de um projeto de integração. Diziam que os livros estavam ali desde a inauguração do prédio, em 1910 e que tinham vindo da sede anterior, à Rua do Passeio, onde ficavam sob as mesmas condições, desde o primeiro prédio, o Convento do Carmo. Eram livros “raros”, que formavam uma coleção paralela.
Eu caminhava no sótão para selecionar, com outros bibliotecários, os livros que seriam retirados dali e levados para catalogação no “porão”; isto é, no térreo da BN (o térreo de prédios antigos, no Centro da Cidade do Rio de Janeiro, fica um pouco abaixo do nível da rua; daí a ideia de “porão”, embora não seja). Depois de catalogados, os livros seriam incorporados à coleção de obras raras.
Eu caminhava no porão e essa caminhada era bem parecida com a do sótão. Eu andava de luvas e máscara no meio de um pó dourado que ficava em suspensão no ar. Aprendi, então, sobre cheiro de papel ácido, sobre umidade, sobre fungo, bicho de livro, obras deterioradas, rendadas; sobre encadernações, seixas, brasões, cortes pintados, ex libris, ex donos... Eu senti a textura do papel de livros fechados por mais de cem anos! Eu abri esses livros e senti seu odor bicentenário, vivo. Toquei segmentos de papel onde outras gentes tocaram para virar as mesmas páginas. Eu vi marcas de digitais desenhadas pelas tintas das penas que manchavam os dedos de leitores-copistas. Eu vi as marcas de leitura, inscritas por mãos que testaram a pena entintada com rasuras nas páginas preliminares, que folhearam aqueles livros num tempo em que tudo era novo.
Lembro que um dia em achei um fio longo de cabelo louro num in-fólio com páginas de papel grosso e desigual, encadernadas num pergaminho amarelecido e ainda solene. Toquei no fio como se pudesse tocar a pessoa que coçou ou apoiou a cabeça e cochilou sobre aquelas páginas. Tive uma interação física com alguém separado de mim por séculos. O que senti devorou meu espírito e me transformou.
É preciso caminhar entre as estantes de toda biblioteca. De preferência, quando há silêncio e à meia-luz. Porque a quietude e a penumbra permitem que se ouça os livros e que eles chamem. Livros falam e chamam. Mas, só se se sentirem confiantes. Sim, livros sentem e escolhem em quem confiar – e quem discordar disso que ouse apresentar-se!
Agora, aposentada da BN e menos perto dos raros, caminho entre os escolhidos da minha própria biblioteca, deixando minhas marcas de leitura, minhas digitais e, talvez, fios de meus cabelos que, espero, alguém há de encontrar quando eu não estiver mais aqui e há de interagir com os diferentes eus que fui, ao longo de minha caminhada por Bibliotecas. Ele há de sentir essa memória pulsante, o impacto particular que os cheiros e as marcas dos livros, tocados e retocados entre os penetrais de uma biblioteca, conseguem eternizar!
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