quinta-feira, 25 de agosto de 2022

ALEPO

  


Vou embora para Alepo. Lá sou amigo do cônsul.

E ser cônsul da França em Alepo não é pouco. Para ele e seus familiares será reservada a melhor mesa dos melhores restaurantes, abrir-se-á ampla passagem nas mais concorridas festas e inaugurações oficiais e, se tiver algum dodói, os mais conceituados médicos da cidade disputarão a honra de curá-lo. Graciosamente.

Por reverência ao cônsul, a Fundação Aga Khan disponibilizou a este joão-ninguém que daqui lhes escreve, Reem, jovem, linda, muçulmana e competente engenheira para desvendar a última descoberta do setor arqueológico da cidadela, ainda vedada ao vulgum turistus. Uma série de baixos relevos hititas esculpidos no basalto de vulcões há muito adormecidos. Leões e guerreiros de barba encaracolada, por enquanto estão deitados no chão poeirento, protegidos por incertos plásticos.

Alepo, cidade viva mais antiga do mundo, é dominada pela gigantesca e milenar cidadela, parte do fabuloso centro-histórico-tombado-pela-Unesco etc. Facilmente você se perderá nos labirintos de ruelas protegidas do sol e da chuva por cúpulas, arcos e abóbadas de pedra. Pedra. Toda a Síria foi e continua sendo construída de pedra. Dourada, a pedra reina absoluta não somente na cidade, mas também nos campos e nas relíquias cristãs das redondezas. A igreja bizantina de São Simeão brilha como jóia rara sobre uma planície onde se adivinham cidades mortas, elas todas de negra pedra vulcânica. Ainda se pode contemplar parte da desconfortável coluna onde o santo, dizem, passou anos de sua vida.

Igrejas? A dez minutos, a pé da fabulosa mesquita dos Oumeiades, está o bairro cristão. Lá coabitam na maior harmonia todos os ritos. Ortodoxo grego, armênio, maronita ou romano apostólico. Ir de missa em missa num domingo de manhã é como participar de farto buffet espiritual, com muitos cantos gregorianos e árabes, ícones e afrescos, incenso e brancas barbas. Ritos diferentes, mesmos sorrisos em qualquer devoção.  Até na entrada da mesquita xiita um devoto gentilmente lhe convida a entrar, sob a única condição de tirar os sapatos. Na rua, os adultos cantam um amável welcome e os pequenos estudantes mais corajosos vem lhe perguntar what is your name e, ruborizados, fogem correndo.

Perigosa, a Síria? Quem afirma isso nunca lá esteve. O vendedor de frutas e verduras lhe oferece um copo de chá, a velha caçamba carregada de flores que você fotografou, pára e o motorista com cara de poucos amigos corre para lhe oferecer uma flor.

Vai surfar nos séculos, mergulhar nos milênios e fazer malabarismos com palavras mágicas extraídas das Mil e Uma Noites. Se ainda não leu o tijolo, recomendo a tradução do explorador Richard Burton, até hoje nunca superada. Aprenda a usar, com desenvoltura, os termos Sultão, Mesquita, Zenôbia, Soliman, Serralhos, Otomano, Hamam, Mesopotâmia, Sinan, Hititas, Caravana, Harém, Palmira, Eufrates e, de repente, você vai bater de frente com as origens da civilização ocidental. Afinal é nas areias e terras pedregosas da Síria que se descobriu o primeiro alfabeto da História da Humanidade. Este eu vi, com os meus olhos vi, no Museu Arqueológico de Damasco.

Em Alepo, compre o tradicional sabão. 100% natural, afirmam os modestos anúncios. E é natural mesmo, feito de azeite de oliva e de louro. As virtudes não cabem em tão pouco espaço, mas meus amigos afirmam que perdi dez anos em um mês só pelo uso deste sabão milagroso. Inch Allah!

 

Dimitri Ganzelevitch                                                                              Salvador 12 de junho de 2008.

 

2 comentários:

  1. Por falar em Aleppo, uma das cidades mais elegantes do mundo (antes da guerra), lembrei de indicar a você, que é um bon gourmand, a Casa Aleppo. Como em toda Salvador não existe um único restaurante de comida árabe autêntica ou sequer próxima dela, são todos fakes, recomendo a raridade que fica em Buraquinho. Vai gostar: ambientação, a culinária forte do oriente médio, meio mediterrânea e meio do Magreb. O cozinheiro é o dono, sírio.

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  2. Tenho e li o livro do explorador Richard Burton!! Vida fascinante desse belo homem!

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