quarta-feira, 31 de agosto de 2022

O BARQUINHO VAI...

 


As águas da baía se esparramam debaixo de minha varanda. Costumam ser de uma imobilidade absoluta, metálica. Hoje é chumbo, ontem foi aço. Confundem-se com o céu que elas refletem, costuradas vagamente lá no fundo com as prováveis terras que anunciam Salinas das Margaridas e a entrada do rio Paraguaçu.

Vez ou outra, quando os ventos mal-humorados reclamam, sobem então ondas a lamber as laterais dos barcos. Mas nunca por muito tempo. Lá, no fundo, à minha direita, adivinhava brancas ondas explodindo nos rochedos de Montserrat. 

Hoje tem doze cargueiros. Ontem foram catorze. Como se estivessem soldados na chapa. Sai um, carregado de contêineres vermelhos e verdes. Vai rodando devagar, sem ajuda dos rebocadores, aqueles barquinhos que, com seu nariz achatado, sempre me lembram desenhos animados dos anos 40. Suponho que, por razões econômicas, prescindiu desta solução lenta e penosa.

Ao sair do cais, algum cargueiro, raivoso, soltará uma enorme fumaça preta parecendo xingamento.

Barcos menores deslizam tesourando a superfície. Me lembro do balanço dos saveiros, velas amarradas, na Rampa do Mercado, descarregando frutas e sacas de farinha. Quanta falta me fazem... 

No meio dos cargueiros, um barquinho, como perdido na imensidão cinza. Algum pescador. Daqui não dá para ver bem o homem, muito menos a vara. Quem será? Quantos anos pode ter? Uns quarenta, sessenta? Como saber?

Ali está ele, sem idade, sem rosto, isolado do mundo, dialogando silencioso com os peixes que, sabidos, hesitam em morder a isca. Em que, em quem pensará o pescador? Em sua mulher, sua amante, seus filhos? Na falta que faz algum dinheiro a mais para comprar a nova geladeira? Ou é simplesmente um aposentado, amador de solidão, que assobia desafinando, mas feliz por estar longe de tudo? Dá uma olhada do canto do olho para esta cidade tentacular que tudo abocanha à sua volta, e ele, aliviado por ter escapado, nem que seja por algumas horas. 

Tem tantos anos que vejo este barquinho...

Como saber se é o mesmo? Claro que não tenho a certeza. Pode ser ele como qualquer outro, se revezando, quem sabe, antes do começo do dia, muito antes de eu acordar. Mas sim, é sempre o mesmo, só mudando de rosto ou de idade. As iscas pouco variam, os pensamentos também. 

Há quinhentos anos que barquinhos estão a pescar nestas mesmas águas... Que bobagem! Bem mais de quinhentos anos, mil anos... mais! Todos pensando coisas similares, todos à espera de peixes que já foram mais inocentes e mais numerosos.

Só mudaram os ruídos da ribeira, a forma dos grandes barcos. Onde estão as caravelas, as fragatas, suas brancas velas e seus marinheiros brigões e malcheirosos?

Lá vai ele, meu barquinho, se afastando, devagar, sempre mais distante...

Dimitri Ganzelevitch

Salvador 31/08/2022

 

 

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