Osvaldo Alvarenga*
Lisboa é fotogênica. Tem luminosidade própria e incomum. São vários os fatores que tornam especial a luz na cidade: os 260 dias em média de sol por ano, a posição geográfica menos propícia à concentração de nuvens; as colinas que a envolvem, que refletem e dispersam a luz; toda a Baixa Pombalina construída como uma concha virada para o Tejo, que devolve para a cidade a luz e, finalmente, os materiais usados nas construções das fachadas, quase sempre em cores claras, mas sobretudo as calçadas portuguesas, feitas majoritariamente de pedras brancas de calcário que potencializam a luz do sol.
A calçada portuguesa como a conhecemos nasceu no Séc. XIX, em 1842, iniciativa do governador de armas do Castelo de São Jorge, o Sr. Engenheiro Tenente-Coronel Eusébio Cândido Furtado, que mandou fazer um calçamento nas imediações do castelo para uma parada militar. A obra, realizada por prisioneiros, desenhava um zig zag com mosaico de pedras calcárias pretas e brancas. Causou tanta sensação que o mesmo Eusébio Furtado recebeu a encomenda da Câmara Municipal para, seis anos depois, iniciar obra de calçamento da área central do Rossio. Mais uma vez os prisioneiros foram convocados e o trabalho concluído após 323 dias. O Engenheiro concebeu um padrão de linhas onduladas, alternadas em preto e branco como se fossem ondas em referência ao encontro do Tejo com o mar. O desenho recebeu o nome de Mar Largo.
O mesmo padrão foi copiado em várias outras cidades de Portugal e em países lusófonos. No Brasil chegou por Manaus, no Largo de São Sebastião, em 1900. Depois, na década de 20 foi adotado na orla da zona sul do Rio; com as ondas em sentido perpendicular ao mar. Finalmente a partir da década de setenta o padrão ganhou fama mundial na Praia de Copacabana. No projeto de Burle Marx a Av. Atlântica foi alargada e ganhou o calçadão; desta vez com as ondas colocadas em sentido paralelo ao mar. Hoje Copacabana é indissociável do seu calçadão.
As calçadas portuguesas têm o mesmo protagonismo em Lisboa. Além de importância central na luz da cidade, fazem parte da identidade lisboeta
As calçadas portuguesas têm o mesmo protagonismo em Lisboa. Além de importância central na luz da cidade, fazem parte da identidade lisboeta. O variado mosaico tem histórias que a maioria de nós nem imagina, como o “grafite na pedra”, por exemplo, a assinatura que o calceteiro deixa na sua obra; clandestina e anônima, só reconhecida pelos próprios, dá graça adicional às calçadas: uma pessoa pode passar a vida brincando de encontrar uma flor, um barquinho, um relógio, uma estrela ou um trevo de quatro folhas em tamanho diminuto camuflados entre os padrões oficiais.
Apesar disso as tradicionais calçadas têm estado sob fogo cerrado. É que escorregam demais. Onde há muito tráfego então, polidas pela circulação de pessoas, viram um sabão. Se a descer uma colina, pior ainda. Se debaixo de chuva, é impossível andar em segurança. Se são inseguras para qualquer pessoa, imagine para os muitos idosos que vivem cá ou na acessibilidade das pessoas com deficiência. A solução não é simples. Desprezar a tradição? Esquecer a identidade? Comprometer a luz da cidade? Descaracterizar as ruas históricas e por em risco o turismo, que gera empregos e receitas que a cidade não está preparada para perder?
Há uma lei de acessibilidade de 1988. Em 1997 um novo texto. Em 2006 mais um, ampliando o anterior e definindo prazo de sete anos para as cidades encontrarem uma solução. A Câmara de Lisboa vem buscando alternativas. Fora da cidade histórica, nalguns bairros, está substituindo a calçada portuguesa por passeio mais largos, feitos de cimento branco ou intercalando pedras de lioz ou granito com as tradicionais de calcário para aumentar a aderência. Mas as soluções para tornar a circulação de pessoas mais confortável e segura segue gerando controvérsia e desaprovação por boa parte dos lisboetas.
Percebo tudo isso. Aqui perto de casa, na 24 de Julho, início da via marginal que vai até Cascais, há dois anos entregaram uma obra de renovação da área, fizeram um grande calçadão de cimento muito branco onde antes havia estreita calçada portuguesa. Reduziram os espaços dos carros para colocar uma longa ciclovia. Certíssimo, ciclovias no lugar dos carros, mais calçadas e mais segurança, mas aquele cimento branco…
Sobre o articulista:
Osvaldo Alvarenga, tem 54 anos, reside em Lisboa e escreve para os blogs: Flerte, sobre lugares e pessoas e Se conselho fosse bom…, sobre vida corporativa e carreira. Atuou por 25 anos no mercado de informações para marketing e risco de crédito, tendo sido presidente, diretor comercial e diretor de operações da Equifax do Brasil. Foi empresário, sócio das empresas mapaBRASIL, Braspop Corretora e Motirô e co-realizador do DMC Latam – Data Management Conference. Foi diretor da DAMA do Brasil e do Instituto Brasileiro de Database Marketing – IDBM e conselheiro da Associação Brasileira de Marketing Direto – ABEMD, dos Doutores da Alegria e, na Fecomercio SP, membro do Conselho de Criatividade e Inovação.
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