domingo, 30 de agosto de 2020

ALTA TENSÃO

Maria Callas — People — Royal Opera House

Quase nove horas da noite. Uma chuva fina reveste as ruas de verniz prateado. Grandes guarda-chuvas protegem os apressados que se dirigem ao teatro São Carlos.
No hall de entrada, ao retirar os abrigos, luzem os longos vestidos e faíscam as jóias. Os homens de smoking tentaram individualizar o negro uniforme com uma borboleta, um colete, um cinto colorido. Ousadias.
Esta não é uma noite de gala qualquer.
Cada um sabe que estar aqui, hoje, no mais belo teatro de Lisboa, é um privilégio raro.
Na sala – como é linda a sala, com seus ouros sobre fundo bege, seus apliques cristalinos, suas poltronas de veludo, os delicados afrescos do forro! – na sala, os espectadores vão sentando com a ajuda dos lanterninhas apressados, braço carregando pesados programas. Estes nunca se venderam tanto!
Alguns homens, em vez de sentar, ficaram em pé, voltados para a entrada, para ver quem está chegando. Fazem com a mão um sinal para os conhecidos. Elas observam, com binóculos, quem está ocupando os camarotes. Até o presidente da república marcou presença, com todas suas condecorações e familiares, no camarote oficial, acima da entrada, com direito ao brasão nacional.

Na fossa, os músicos afinam seus instrumentos, sem nunca deixar escapar algum acordo que lembre a obra da noite, nem sequer o mínimo pedacinho de ária.
Na exata hora anunciada, chega o regente. Aplausos.
Os burburinhos cessam. Nos bastidores, batem as três rituais pancadas.
A orquestra inicia a abertura de “La Traviata”.
Levanta-se a cortina, lentamente, com suas pesadas fileiras de galões e pompons.
O baile, no palacete da Dama das Camélias, já começou. Os convidados enchem o palco. Confessemos que, apesar da sedutora música de Verdi, a banalidade dos figurinos e do cenário, a mediocridade da direção dos figurantes e coristas não levantam o entusiasmo de um público de habitués e blasés.
No ar, uma tensão evidente. Umas centenas de fanáticos do bel-canto estão sentados na beira do assento, busto inclinado para frente.
Esperando.

De repente, é como uma explosão, uma irrupção vulcânica. Alta, fina e elegante, a prima-dona acaba de entrar. A partir deste momento, nada será como dantes.
Majestosa? Não. Imperial.
Nos seus imensos vestidos de decote generoso, ela vai dominar a famosa ópera romântica muito acima das mais loucas expectativas. Sua voz de soprano, pura como aço temperado, é oferenda celeste, domina as notas mais altas sem perder fôlego nem força e se transforma em rico brocado nos momentos mais sombrios. Nunca Verdi foi assim cantado. A demi-mondaine vive trágica e sofre, sorrindo, debaixo de nossos olhos. A sala inteira irá chorar a sua longa agonia, enquanto o Alfredo Kraus, magnífico tenor-amante, parte para casar com outra. Será uma das últimas apresentações de Maria Callas. Poucas vezes terá cantado com tal gênio, as gravações da época estão aqui para provar que não estou exagerando.
O palco e a sala, durante umas duas horas, serão submetidos á mais alta tensão. Ninguém se permite o mínimo comentário senão uma ou outra incontrolável exclamação de entusiasmo. Nas mesmas tábuas, onde já vimos Birgit Nilsson, Renata Tebaldi, Victoria de los Angeles, Elizabeth Schwarzkopf, sem falar dos Tito Gobbi, Boris Christoff e outros, ninguém, nunca, será comparável a mitológica grega.
Estamos hipnotizados, subjugados, entendendo finalmente o verdadeiro significado da expressão “monstro sagrado”.

Dimitri Ganzelevitch                                                       Salvador, 9 de outubro de 2008.




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