sábado, 4 de setembro de 2021

O GRITO FICOU ENTALADO

 


Toda animada, ela me telefonou. “Já marquei passagem para Oporto. De lá pego um ônibus até Pontevedra”. Ficará em casa de familiares que não conhece, mas os laços parentais ignoram tempo e distância. Sei que será recebida com carinho e festejos. Além do mais, a pequena cidade, do tamanho de Jacobina, goza de uma das mais agradáveis qualidades de vida da Europa. Tem um pequeno e lindo centro histórico e ela, muito chegada a uma mesa farta, vai pode se lambuzar de mariscos, melhores que os nossos pela água biologicamente mais rica. E os petiscos? Tortillas, cogumelos, presuntos, lulas e as famosíssimas batatas galegas acompanharão um copito – ou mais! - de suculento Albariño.

E lá vou eu, transportado aos meus vinte e poucos anos, quando fui desde Lisboa, por três vezes, à bela “Espanha verde”. Não vou pedir a minha amiga para trazer um pouco do ar puro galego enlatado, mas como gostaria de embarcar nesta viagem!...

“Sua sorte maior será de estar a uns 60 quilômetros de Santiago de Compostela, um dos santuários mais fabulosos do mundo cristão. ” Ao mencionar este nome, lembranças chegam a galope. Aparecem as torres da catedral dominando soberbamente a cidade. Me perco nas ruelas medievais onde ainda voa o incenso de antigas procissões e, nos becos, sombras de espadachins encapuçados atacam fidalgos inimigos. Passeando com a escultora Marina Karella e o historiador Michel de Grêce, ao entrar numa daquelas praças mágicas, este declarou ser o cenário ideal para o Don Giovanni de Mozart. Cada esquina respira música, memória, teatro.

Já me hospedei em muitos albergues, pousadas, hotéis de charme e até em alguns palaces, mas nunca nada se comparou ao deslumbrante Hostal dos Reyes Católicos – naqueles tempos, os preços eram mais amenos – com seus dois pátios góticos e outros dois renascença.

À medida que vou conversando com a amiga, revivo as emoções do “esteta/24 horas” quando tudo, a cada passo, era motivo de pasmo. A bem da verdade, este estado de permeabilidade até hoje não desapareceu. É uma fragilidade? Com certeza, mas, ao mesmo tempo, penso estar ali minha relativa força. Não tenho o mínimo pudor em confessar que, sim, chorei ao penetrar no sítio de Machu-Pichu e ao deslizar pelo rio Nilo. Aos 85 anos ainda ser capaz de me emocionar ouvindo Pretty Yende cantar Panis Angelicus não seria o segredo de uma teimosa adolescência?

Bem... Ela voltou da Galiza. Mais gorda. Eu, ansioso por saber as impressões de Santiago. “Ah! Nem fui! Meus parentes disseram que era como Pontevedra, em maior...”. Não acreditei a tranquila declaração. Meu grito ficou entalado na garganta. Um fosso profundo abrira-se entre nós. Abismal falta de curiosidade, de cultura.

Não dava mais para sermos amigos.

                                                                   Dimitri Ganzelevitch                                                                                      A Tarde, sábado 4 de setembro 2021 

Um comentário:

  1. Cultura, como diz o nome, se cultiva. Não é dada a espíritos fúteis.

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