Teresa Rita Lopes: ‘O Fernando Pessoa anda por aí todo deturpado’
Estuda a obra de Fernando Pessoa há meio século e já deu a volta aos 27 mil documentos do espólio por mais de uma vez. Teresa Rita Lopes, que acaba de publicar Livro(s) do Desassossego, fala sobre a sua relação com o poeta e sobre ‘o vandalismo’ da edição crítica.
rque achou que era preciso mais uma edição do Livro do desassossego, quando já existem tantas?
A última foi uma edição crítica do Jerónimo Pizarro. Quando ele veio para Portugal, no início de 2000, foi meu aluno e do Fernando Cabral Martins, de maneira que acho que lhe pegámos esse interesse pelo Pessoa. Não ficou no meu grupo por razões que não vêm ao caso, e foi trabalhar para o grupo do atual orientador da edição crítica, que se chama Ivo Castro. Sabe disso, não sabe?
Não.
Quando fez 50 anos da morte do Pessoa, em 1985, o António Alçada Batista, que foi um grande obreiro da cultura, constituiu uma comissão para os festejos. E essa comissão decidiu que íamos fazer uma edição crítica do Pessoa, porque até aí cada um fazia as edições a seu bel-prazer. O Alçada Batista convidou-me, mas eu disse: ‘Não entro para esse convento’.
Porquê?
Porque não sou filóloga e aborrecem-me aquelas edições críticas, que são muito chatas, com muitas notas de rodapé. Gosto de fazer edições muito mais depuradas e que deem prazer ler. E foi então designado esse senhor, Ivo Castro, que é filólogo e professor na Universidade de Letras. Só que o homem é medievalista, de Pessoa não percebe patavina, e escreveu um livro em que diz que para se fazer uma edição crítica de Pessoa é preciso não perceber nada de Pessoa.
Para ter distanciamento?
Para ter uma objetividade científica. O que é um perfeito disparate, porque esse método só poderia ser aplicado a textos publicados em vida pelo autor. Antes do Ivo Castro, foi designada para fazer isso uma senhora italiana especialista em Literatura Portuguesa chamada Luciana Stegagno Picchio. E ela dizia-me: ‘Ó Terresa, vamos fazer isso’ [com sotaque italiano]. ‘Mas vamos fazer isso como?’. ‘Meto no computor’ [risos]. Nessa altura eu já tinha estado no espólio e sabia que aquilo é tremendamente difícil.
De decifrar?
Em 1990 publiquei dois calhamaços chamados Pessoa por Conhecer. É que toda a gente fala do Pessoa como se o conhecesse. Estava à procura desse livro para lhe mostrar. Então leia lá este manuscrito do Álvaro de Campos.
‘A alma humana é porca como…’
[Ri-se] Leia por cima que é mais fácil.
‘Um cu’.
O Pessoa faz isto: quando escolhe mesmo, risca o que está na linha corrida. Mas a maior parte das vezes não risca, e põe uma variante em cima, ao lado ou entre parêntesis. As edições críticas tratam da mesma forma a emenda e a variante. Aqui não faz diferença porque o que estava na linha corrida era ‘como um ânus’ e assim até fica mais forte. Agora leia o resto.
‘E a vantagem dos…’.
É o que está a pensar.
‘A vantagem dos cara****”?!
É isso mesmo. Uma das coisas que divertiu muito as pessoas é que na primeira edição crítica eles leram ‘canalhas’ porque acharam que o Pessoa não podia ter escrito um palavrão. Mas neste caso é mais pela curiosidade. No Alberto Caeiro é mais evidente. Eles assassinaram o Alberto Caeiro, com esse processo de confundir a variante com a emenda. Fazem as escolhas que o Pessoa não fez.
Assassinaram? Mas o que lá está não deixa de ser Pessoa…
Quando fazem uma edição crítica e dão notícia das variantes, tudo bem. Agora as edições que o Ivo Castro coordenou para o Expresso já não dão notícia da variante, portanto o texto fica perfeitamente definitivo, e é aquilo que os meninos vão levar para a escola e que os tradutores vão usar. O Pessoa ainda anda por aí todo deturpado e deformado e é por isso que estou com um espírito de missão de o salvar do vandalismo da edição crítica.
Porque começou a fazer edições do Pessoa se dizia que não queria entrar para esse convento?
Em 1990, o David Mourão Ferreira, que eu estimava muito, chamou-me: ‘Teresa Rita, tem de fazer a crítica a este livro, ao Álvaro de Campos’. E eu disse-lhe: ‘Nem pense, tinha de ir a todos os originais e demorava dois anos.’ Só que ele era um homem inteligentíssimo e percebeu como havia de me convencer. ‘Se a Teresa Rita não fizer ninguém faz, e tem a obrigação cívica de o fazer’. Perante isso, rendi-me. Levei dois anos. Nessa altura era mais difícil porque tínhamos de ir para a Biblioteca Nacional, manusear aqueles papelinhos todos. E saiu uma edição minha do Álvaro de Campos, contestando a do Ivo Castro.
Pode falar-me sobre a sua experiência de lidar com os originais?
Antes de morrer, o Pessoa começou a arrumar os seus livros. Fez maços e esses maços estão hoje na Biblioteca Nacional como foram achados em casa dele. Quando foram arrolados na BN eles respeitaram isso. Agora o nosso trabalho de investigadores está muito facilitado. Já não precisamos de ir consultar os originais na Biblioteca Nacional porque muitos de nós temos um disco externo.
Com tudo digitalizado?
Sim, a senhora da BN deu isso aos investigadores. Depois os investigadores passaram aos seus discípulos – foi o meu caso. Hoje em dia todos os que trabalham em Pessoa têm isso. Às vezes é mesmo necessário ver o original, mas no computador a gente pode ampliar, de maneira que eu, de cada vez que faço um livro destes, volto sempre a ver os originais. Já dei a volta aos 27 mil e tal documentos mais de uma vez – estou muito distraída a ver aquilo. Ainda ontem tive o prazer de descobrir dois novos poemas do Ricardo Reis que estão metidos no meio de outras coisas. Às vezes ele escrevia até no rol da roupa suja, aproveitava todos os papelinhos, e nós temos que ver cada papelinho como um detetive, à lupa.
A caligrafia muda consoante o heterónimo que está a escrever?
É verdade que sim, porque ele faz questão de se despersonalizar. Isto tem qualquer coisa de espírita.
Como se o médium encarnasse o espírito da pessoa?
Ele fazia escrita mediúnica, escrita automática, a ver se os espíritos se manifestavam através dele. Veja aqui, isto é a assinatura dum espírito. Ele fez este poema e depois o espírito disse-lhe: ‘No good’ – não presta. Ele estava sempre nesse limiar entre acreditar e brincar com isso. Olhe este aqui: ele faz este poema e no fim assina ‘Vardur [um dos espíritos] + Pessoa’. E depois o Vardur diz-lhe assim: ‘This poem is yours, my boy’.
Além do espiritismo e da astrologia, Pessoa interessava-se por outras áreas?
Ele era um extraordinário estudioso. Deve ter havido poucas pessoas tão cultas neste país como ele. Porque ele vivia para essa ânsia de saber. Lia, lia, lia – já desde miúdo que era assim – comprava todos os livros que conseguia, depois vendia-os para comprar outros. Interessava-se por tudo. Escreveu sobre sociologia. Sobre as ciências da psique – meu Deus, o que ele escreveu! As pessoas pensam que ele era só um poeta, mas não. Mais de metade dos textos do espólio continuam inéditos. Ainda há muitos livros de Pessoa que deverão ser feitos.
Porquê o interesse pela psicologia?
A avó paterna dele morreu louca e ele assistia aos acessos de loucura da avó em pequenino. Toda a vida ele se preocupa com o que chama ‘génio e loucura’. O Pizarro até reuniu esses textos – ele é um grande trabalhador, não digo mal do meu aluno. Só tenho pena que tenha seguido o método da edição crítica.
Pode falar-me da sua relação com o Pessoa, como o descobriu?
A minha relação com esse rapaz… Descobri o Pessoa aí pelos meus 13 anos no Liceu de Faro. Ia à Biblioteca do liceu e depois tinha um caderninho onde escrevia os poemas de que gostava. O Álvaro de Campos é que me caiu no goto.
Mais tarde vai para França. A relação com Pessoa mantém-se?
Em Novembro de 63 a PIDE não sabia que eu tinha mudado de casa e foi-me prender à antiga casa. Entretanto fui avisada e raspei-me no dia seguinte no Sud Expresso. Em Paris nessa altura não se sabia quem era o Pessoa. O meu diretor de tese, um homem muito célebre na altura, quando eu lhe falei do Pessoa, disse: ‘Eu não conheço’. Hoje não há nenhum estudioso ou mesmo pessoa culta em França que se atreva a dizer que não sabe quem é o Pessoa.
Ainda assim podia estudar bem Pessoa a partir de Paris?
Comecei a vir a Portugal em 1969, depois de o Salazar cair da cadeira. E a primeira coisa que eu fiz foi ir para o baú, em 69. E de 69 a 75 mexi no espólio diretamente.
Recorda-se da primeira vez que foi ao baú?
Para consultar o que estava na casa da irmã tinha de ter uma autorização e fui ao ministério para a pedir. O senhor que lá estava não ma deu e eu estava a ver aquilo muito mal parado. O Veiga Simão, quando soube do que se tratava, mandou-me chamar e disse que sim. Comprei uma máquina de fotocópias muito complicada e comecei a ir para a casa da irmã, que me recebia muito bem.
Era a única pessoa lá?
Na altura aquilo estava a ser arrolado por umas senhoras da BN que nem sei donde vinham, mas tiveram um excelente papel, porque numeraram aquilo tudo. Aqui há tempos fiz para o SOL um texto sobre a segunda arca do Pessoa. Na altura descobriu-se que a família tinha ficado com dois mil e tal documentos que não vendeu à BN e que estava a vender em leilões. Isso é grave porque refazer a obra do Pessoa não é como refazer um puzzle. É refazer vários puzzles. Quando faltam peças é uma chatice.
É quase como uma escavação arqueológica?
Refazer a obra do Pessoa exige de nós gosto e o talento para a arqueologia, porque é reunir as pedras dispersas daqui e dali. As senhoras da BN davam-me os envelopes, e eu ficava ao pé delas a ver aquilo tudo, a fotocopiar e a assistir às conversas. O Pessoa, prevendo que ia morrer, deixou aquilo arrumado. Só que a irmã era uma senhora muito simpática e deixava toda a gente mexericar naquilo. Quando as arroladoras lá chegaram, aquilo já estava tudo misturado. Elas pegavam num papel, uma lia alto e a outra dizia assim: ‘O homem era mesmo maluco’.
A irmã partilhou memórias consigo?
A irmã disse-me uma coisa de que já desconfiava: que o Pessoa era extremamente pudico da sua obra e da sua vida particular. Falava pouco de si. A irmã dizia-me: ‘Ai, nós não fazíamos a mínima ideia de que o Fernando viesse a ser tão importante’. [risos] Eles não davam nada por ele.
Pessoa trabalhou até morrer?
Sim. O que vem na certidão de óbito é que morreu com uma cólica hepática. Agora estão a fazer diagnósticos depois de morto – em que eu não acredito muito – um médico até escreveu um livro sobre isso.
Temos dados suficientes para reconstituir um dia na vida dele?
Mais ou menos. Ele viveu toda a vida com apertos de dinheiro, apesar de ter recebido cinco contos de réis do prémio da Mensagem. Tinha de ganhar o pão com o suor do rosto. Simplesmente exigia não ter horários fixos. Era a sua liberdade. Como era muito conceituado pelos patrões – escrevia cartas comerciais em francês e inglês – além do mais tinha feito um curso comercial no último ano em que esteve em Durban, 1904.
Era um bom funcionário?
Os patrões prezavam-no imenso, davam-lhe muito valor. Mas ele queria ganhar à peça, não ganhava ao mês nem à semana, para ter a liberdade de ir lá quando lhe apetecia. Passava pelos escritórios – tinha mais do que um – para fazer as cartas que deixavam para ele. Mas tinha crises do que ele chamava neurastenia – uma vez escreveu a um amigo: ‘Tive uma crise de neurastenia que me atou o cérebro’ – havia períodos em que não podia trabalhar. Ele foi um homem muito infeliz, de certa maneira.
Mas também deve ter tido momentos de grande exaltação criativa e satisfação.
A gente percebe pelos manuscritos que ele escrevia num frenesi, numa exaltação. A sua mão não acompanhava a vertigem do seu pensamento. Devia ser aquilo que chamam um ciclotímico [alguém que alterna períodos de euforia com períodos de depressão].
Como é que consegue isto nas horas livres? Roubava ao sono?
Ele normalmente ia à tarde. Provavelmente escrevia à noite. E tinha insónias. Por isso é que não durou muito tempo. Além do mais curtia as suas bebedeiras.
Em casa?
Em casa. Aliás ninguém o via bêbedo. Conheciam-no por isso. Às vezes levantava-se do escritório e ia beber um bagaço durante as horas de trabalho. Mas isso deixava-o imperturbável.
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