Entidades e coletivos antiproibicionistas respondem ao governador da Bahia: “Não somos o problema, somos parte da solução”
Nesta terça-feira (21) o governador da Bahia, Rui Costa, afirmou em pronunciamento à corporação policial do estado, às vésperas da “Operação Carnaval”, que o usuário de drogas “tem mãos sujas de sangue”. Entidades especializadas no assunto escreveram uma carta resposta.
Não somos o problema, somos parte da solução
As pessoas que usam drogas não são as geradoras da violência existente em torno das dinâmicas de produção e distribuição das substâncias atualmente criminalizadas. Na contramão da infeliz declaração feita pelo Governador da Bahia, o senhor Rui Costa, no dia 21 de fevereiro de 2017, pode-se dizer que essas pessoas são parte determinante das inovadoras soluções que têm sido apresentadas aos problemas ocasionados pela proibição das drogas.
Na história da humanidade não se pode citar um único momento no qual os seres humanos não se utilizaram do recurso da alteração da consciência, via consumo de drogas, como parte da dinâmica de sua vida social. A proibição é que é um fenômeno recente, Senhor Governador, e precisa ser compreendida na complexidade dos seus interesses, sobretudo em torno de grandes grupos econômicos, como a indústria de armamentos e de prisões privadas.
É necessário estudar História e debruçar-se sobre a vasta literatura disponível para compreender que várias sociedades já administraram o uso de drogas de diferentes formas e que a repressão tem sido a forma de administração mais deletéria para a nossa sociedade. Convidamos o Governador para conhecer outros modelos de gestão da política de drogas, a exemplo dos que vêm sendo desenvolvidos no Uruguai, em Portugal e na Holanda.
Atualmente o Brasil e a Bahia têm feito a opção de operar a política de drogas por um viés que produz um conjunto enorme de violações de direitos. A declaração de um Governador de Estado de que são as/os usuárias/os o foco do problema nos mergulha nesse contexto de violência ao invés de nos retirar dele.
Ao observar o relatório do “Mapa da Violência 2016 – Homicídios por armas de fogo no Brasil”, entendemos porque as pessoas estão morrendo e quem as têm matado. Não é possível encontrar nesse material informações que atestem que as pessoas que usam drogas têm morrido pelo simples consumo de alguma substância ilícita. Também não é possível verificar que são as pessoas que usam drogas as que mais matam em decorrência de seu consumo. Contudo, veremos no mesmo relatório, através da análise de dados, que os homicídios no Brasil são parte intrínseca da opção política pela Guerra às Drogas, que coloca em confronto armado – financiado e estimulado pelo Estado como suposta solução – cidadãs e cidadãos, trabalhadores/as da segurança pública e dirigentes governamentais. A guerra tem provocado muito mais mortes do que o consumo de qualquer droga e isso precisa finalmente ser compreendido com a seriedade e a honestidade que a questão demanda.
Diferente do que reproduz o Governador, é justamente este fenômeno do superencarceramento e do extermínio, criado por meio da política de Guerra, que tem possibilitado o surgimento de organizações criminosas. Se o governador se dispusesse a compreender a história do surgimento de facções criminosas no mundo, perceberia como a proibição das drogas foi o que possibilitou a formação das grandes máfias. Vamos nos lembrar como o grande traficante Al Capone surge: a partir da proibição do álcool nos Estados Unidos da América na década de 30. Como o cenário de violência gerado pelo tráfico de drogas foi resolvido naquela ocasião? Por meio da regulamentação do álcool pelo Estado.
A taxação de impostos sobre a comercialização do álcool possibilitou o investimento em prevenção e difusão de informação sobre seus efeitos e a arrecadação de tributos proveniente destes negócios tornados novamente lícitos ajudou os EUA a saírem da chamada ‘Grande Depressão Econômica’ pós-1929. Regulamentar, taxar e reverter o recolhimento de impostos gerado a partir do consumos dessas substâncias à melhoria dos sistemas de saúde, assistência social, educação, trabalho e geração de renda, cultura, segurança pública e outros, compõem a nossa proposta para acabar com as facções criminosas – fato que já tem ocorrido em países como Uruguai, Holanda, Portugal e alguns estados norteamericanos. O que sustenta as facções são os lucros obtidos no comércio ilegal de drogas. O mercado ilícito, não regulamentado, faz com que o comércio fique no poder do tráfico de drogas e não do Estado.
Mais uma vez o Governador nos assusta com seus pronunciamentos sem qualquer fundamento prático e científico, mostrando pouco acúmulo no que diz respeito à Política de Drogas. Além disso o Governador viola os nossos direitos humanos enquanto pessoas que usam drogas ao nos culpabilizar pelas mortes geradas por suas opções filosóficas e políticas em defesa da Guerra contra as pessoas – disfarçada de guerra contra algumas substâncias.
Dirigir as políticas de Estado deveria significar o fortalecimento dos nossos direitos sociais e do estado democrático. O Estado não deveria violentar o seu povo, sob nenhum pretexto, mas sim protegê-lo. Isso é o que está inscrito na nossa Constituição da República e na Constituição do Estado da Bahia. É de responsabilidade do Governador do Estado também a opção por uma política sobre drogas que proteja a nossa população ou que siga o caminho da violência e truculência do Estado. Não é uma responsabilidade das pessoas que usam drogas. Lamentavelmente o Governador tem optado por se somar ao extermínio em massas das populações sobretudo pretas, pobres e periféricas, ao ignorar que sua opção pela Guerra é a que tem mais retirado nossas vidas.
Quem está com as mãos sujas do sangue do nosso povo é quem outrora celebrou a morte de 12 jovens negros em nome do “combate ao tráfico” na Chacina do Cabula, fato que não diminuiu desde lá e não diminuirá enquanto persistirmos no erro da Guerra. Responsabilizar os usuários e as usuárias de drogas pelas mortes causadas pelo Estado é operar pela desumanização dessas pessoas, que já têm sido vulnerabilizadas o suficiente pelo próprio contexto da Guerra. A opção da Guerra não foi e não é nossa, Governador. Quem dirige a Guerra é o Estado e quem pode parar com ela e com as mortes ocasionadas por ela é você!
A proibição das drogas mostrou que não tem sido eficaz a tentativa de controle da sua demanda. O consumo não diminuiu em nenhuma parte do mundo onde essa opção foi mantida e a Bahia não seria exceção a isso. Nossa luta tem sido pela defesa da vida das pessoas que usam drogas, para que possamos dialogar sobre elas e suas necessidades de maneira mais acolhedora e não punitiva. A opção do Estado pela punição além de ter possibilitado o aumento no consumo de drogas, tem aumentado também problemas históricos como as desigualdades sociais, o racismo e a violência.
A mudança da política de drogas exige um debate sobre um novo modelo de segurança pública. Rediscutir o papel social das polícias, desmilitariza-las e formá-las sob uma perspectiva do respeito aos direitos humanos assusta e acovarda governantes na Bahia e em todo mundo. É nosso dever apontar que o atual modelo de segurança pública elege quais vidas merecem proteção e quais merecem ser exterminadas. É nosso dever cívico denunciar um Estado que opta por uma segurança pública bélica e que transforma territórios empobrecidos em zonas de Guerra. Talvez por isso o Governador tenha nos elegido agora o bode a ser posto no meio da sala e apontado como o suposto problema. Mesmo com as investidas contra nós não deixaremos de apontar de maneira qualificada essas questões e de acreditar que nosso papel enquanto movimento social de pessoas que usam drogas é lutar, sobretudo, pelo direito a nossas vidas.
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