quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

CLÁUDIO EM BERLIM

Berlim 
 a memória, a gentileza 
e o hedonismo
CLÁUDIO MARQUES
CINEASTA

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"No Intenso Agora", de João Moreira Salles. Filme exibido na última Berlinale


Pela sexta vez, eu estive em Berlim. Sempre no inverno. Sempre durante a Berlinale, o festival de cinema que chega a sua 67ª edição. Dos grandes festivais europeus, é o que eu mais gosto sobretudo por ser aberto ao público como nenhum outro. Cerca de 500 mil pessoas assistem a filmes diversos, blockbusters e, em sua maioria, filmes indepentes.

Eu gosto das salas de cinema de Berlim. Possuem personalidade. E eu costumo me interessar pela programação do festival. Quase nunca aprecio os filmes em competição, mas “me jogo” de corpo e alma nas mostras paralelas. Sempre saio com boas surpresas.
No primeiro ano que eu fui, assisti mais de cinqüenta filmes. Mas, quase não vi a cidade. Aos poucos, passei a ver menos filmes, a conhecer mais pessoas e a visitar mais a cidade.
E eu não quero falar sobre o festival, aqui. Quero falar de uma cidade intensa. Uma cidade que me encanta a cada nova visita.

Andar por Berlim é caminhar pela história do século XX. Uma história terrível. Há uma grande ferida exposta em uma cidade destruída e depois dividida por décadas. Milhões de pessoas foram assassinadas. Percebo nos moradores de Berlim que há um forte sentimento de responsabilidade com relação à barbárie experimentada durante a II Guerra Mundial. Os berlinenses não estão varrendo a sujeira histórica para debaixo do tapete. Talvez por terem saído perdedores da contenda, talvez pela intensidade do nazismo, talvez por tanta crueldade, mas é fato que os detalhes dos acontecimentos estão pelas ruas para quem quiser ver e conhecer. Partes do Muro de Berlim, mas também placas e fotos espalhadas pela cidade. As grandes narrativas, mas também as pequenas.

Eu visitei uma pequena escola e observei uma aula sobre a memória para crianças de 10 anos, aproximadamente. A professora tinha pedido aos alunos que eles levassem apenas um objeto de casa, naquele dia. Na escola, a professora perguntou o que eles sentiriam se, a partir dali, eles não pudessem mais voltar para casa. Não poderiam ver mais seus pais ou amigos. Nem poderiam mais pegar roupas e objetos pessoais. Foi assim com os judeus, ciganos, homossexuais e tantos outros. O efeito é forte sobre as crianças.

Essa situação está em “Where to Invade Next”, de Michael Moore. No filme, Moore toma a Alemanha como exemplo para cobrar os norte-americanos de fazerem seu mea-culpa histórico com relação ao genocídio perpetrado contra os índios. No Brasil, atitudes semelhantes deveriam ser tomadas com relação aos índios e negros. Não se trata de culpa, mas de responsabilidade perante a história.
Recentemente, os alemães inauguraram um memorial aos ciganos perseguidos e assassinados durante o II Reich perto do Portão de Brandemburgo. Ainda faltam alguns grupos e etnias a pedir desculpas oficiais.

Eu sempre ando muito por Berlim, mesmo com temperaturas que beiram menos dez graus Celsius. Eu já tentei caminhar por todo o traçado que o antigo muro fazia. Não consegui, me perdi diversas vezes. Eu tentei entender como se fechou a circulação entre ocidente e oriente, inclusive aos metrôs. Difícil compreender. Sei que os trens de algumas linhas passavam direto por Alexander Platz (Berlim Oriental), por exemplo. Tais estações só foram reabertas em 1989.
Os berlinenses costumam ser gentis e muito educados. Normalmente, são pessoas amorosas e estão muito distantes da imagem dura, severa, que o cinema nos legou.
Eu me lembro da primeira vez que eu estive em Berlim. Eu tinha acabado de chegar e tentava compreender como funciona o sistema de bilhetes no metrô. A senhora que me atendia não falava inglês. Ela saiu de sua posição, fechou o guichê e se esforçou ao máximo para que eu compreendesse as regras. Algumas pessoas chegaram e uma pequena fila se formou. Ninguém reclamou, todos esperaram e até me ajudaram a compreender o sistema.

Mas, me vem a questão de como os pais e avôs dessas pessoas cultas e gentis serviram ao nazismo. Poucas vezes tive coragem para perguntar aos meus amigos berlinenses “Onde estava o seu avô em 1943?”. Quando levantei tais questões, escutei as piores histórias. Algumas pessoas me falaram sobre o rolo compressor que um movimento de massas organiza na vida das pessoas. “Quando todos falam a mesma coisa e te obrigam a tomar determinadas medidas argumentando que é a única possibilidade para todo um povo.... fica mais difícil”. Não justifica, mas compreende-se a atmosfera. Precisa ser muito forte para fugir ao que a maioria estabelece como “correto”.
Hoje, Berlim é uma cidade organizada ao extremo. O ônibus não apenas chega no horário (no minuto programado), mas se inclina a fim de ficar no mesmo nível de quem vai subir. É uma cidade multicultural. Fui assistir a “Close-Up”, de Abbas Kiarostami e a sala estava cheia de iranianos residentes em Berlim. 

É uma cidade humana e preocupada com seus habitantes.
Eu já passei por aquela situação que quase todo latino-americano experimenta quando está na Europa: eu saí de um restaurante com amigos às 2h. As ruas estavam escuras (sim, não há a preocupação de iluminar todas as ruas uma vez que não existe perigo) e o melhor caminho nos levava a um bosque ermo. Eu andava olhando para os lados. Os meus amigos, de vários cantos do mundo, perguntavam se algo me perturbava, seu eu tinha esquecido algo. A verdade é que a paranóia da violência urbana me acompanhava. Mesmo eu, que teimo em andar a pé e de bicicleta por Salvador.
Durante o dia, os berlinenses são trabalhadores que amam planilhas, amam Excel. À noite, "despirocam o cabeção" e caem "na bagaceira". Costumam beber bastante. Berlim é a capital gay da Europa. Uma das cidades mais tolerantes do mundo. O cineasta brasileiro Karin Ainouz fez um belo filme chamado “Praia do Futuro”, onde narra, em fortes elipses, como se sentia oprimido em um Brasil arcaico. E como encontrou a liberdade pessoal em Berlim. Para isso, deixou família e amigos para trás. Teve que ser forte. “Praia do Futuro” é uma ficção, que traz um forte depoimento pessoal.

A Berghain é o reduto mais impressionante do hedonismo e da música eletrônica, em Berlim. Originalmente, 100% gay, mas o espaço ficou mais aberto para públicos diversos.
Na Berghain, permite-se tudo, menos fotografar o ambiente. Isso serve para que as pessoas tenham liberdade de fazer o que quiserem. E os seguranças reprimem, de forma severa, quem tenta registrar o impressionante espaço com paredes de cerca de 20 metros de altura. Antes, ali funcionava uma usina. A Berghain pode abrigar mais de 1.500 pessoas. Mesmo para quem não está ambientado com a musica eletrônica, o que se toca na Berghain é excepcional. Os melhores músicos da cena eletrônica estão lá.
A procura pela Berghain é tão grande que logo no início da noite uma longa fila se forma. E os seguranças escolhem quem entra ou não. Isso é bastante antipático, na verdade. Eu entrei na fila uma vez. Estava muito frio: cerca de menos cinco graus. Eu fiquei vinte minutos na fila, por sorte. Entrei quando pensava em desistir. Lá dentro.... bom, é um espetáculo inenarrável. É um lugar incrível!

Nessa última edição da Berlinale, um dos filmes que mais me marcou foi “No Intenso Agora”, de João Moreira Salles. O longa começa com imagens amadoras feitas por sua mãe, em 1968, na China comunista de Mao. Ela parecia feliz, muito feliz, em um país em distinto a ela, mesmo. A pergunta suscitada é a de como voltar ao normal, à vida cotidiana, após tamanha experiência de vida? Após tanta alegria?
Da experiência pessoal para a sociedade, em seu conjunto e no mesmo período. Sempre através de imagens, sons de arquivo e narração do próprio João, “No Intenso Agora” nos transporta para a intensidade e euforia do Maio de 68, na França. E para a Techoslováquia, que flertaria com a democracia, mas acabaria invadida pelos soviéticos. O filme passa de raspão pelo Brasil pós-AI5. Da euforia à depressão. À morte e ao luto.

Compreendo e respeito o raciocínio de Salles nesse belíssimo ensaio. A partir dele, eu fiquei pensando sobre a minha própria experiência durante essa viagem. Para mim funcionou de forma distinta. Eu voltei para Salvador, para o meu dia-a-dia, com a sensação de plenitude que somente esse tipo de aprendizado propicia. A idéia de trazer parte desse aprendizado me amina. Não há riqueza maior que viajar. E retornar se mostra imprescindível.

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