Mia Couto: repensar o pensamento, redesenhando fronteiras
“Temos medo dos que pensam diferente e mais medo ainda daqueles que, são tão diferentes, que achamos que não pensam. Vivemos em estado de guerra com a alteridade que mora dentro e fora de nós. Esse é o defeito original das fronteiras que fabricamos.”
– Mia Couto
– Mia Couto
Em artigo exclusivo, Mia Couto, romancista moçambicano, escreve sobre a fronteira dentro e fora de nós. Fronteira. Palavra que alerta para o limite entre o outro e eu, que questiona a sabedoria do homem de criar “paredes vivas e permeáveis”. Fronteiras que surgem da linguagem bélica e que parecem confirmar o campo de batalha em que vivemos nossa identidade. Fronteiras contidas no título de sua conferência, Um repensar de fronteiras, e que nominam o projeto cultural Fronteiras do Pensamento, para o qual escreveu este texto.
Mia Couto: Repensar o pensamento, redesenhando fronteiras*
Este ciclo de conferências escolheu, para se designar, um título sugestivo: Fronteiras do Pensamento. Acreditamos, à partida, que o pensamento não tem fronteiras. Foi feito para superar limites, para rivalizar com o sonho na visita ao impossível.
Nosso pensamento, como toda a entidade viva, nasce para se vestir de fronteiras. Essa invenção é uma espécie de vício de arquitetura: não há infinito sem linha do horizonte. Desde a mais pequena célula aos organismos maiores, o desenho de toda a criatura pede uma capa, um invólucro separador. A verdade é esta: a vida tem fome de fronteiras. É assim que se passa e não haveria nada a lamentar. Porque essas fronteiras da natureza não servem apenas para fechar. Todas as membranas orgânicas são entidades vivas e permeáveis. São fronteiras feitas para, ao mesmo tempo, delimitar e negociar. O “dentro” e o “fora” trocam-se por turnos.
Um dos casos mais notáveis na construção de fronteiras acontece no mundo das aves. É o caso do nosso tucano, o tucano africano, que fabrica o ninho a partir do oco de uma árvore. Nesse vão, a fêmea se empareda literalmente, erguendo, ela e o macho, um tapume de barro. Essa parede tem apenas um pequeno orifício, que é a única janela aberta sobre o mundo. Naquele cárcere escuro, a fêmea arranca as próprias penas para preparar o ninho das futuras crias. Mesmo que quisesse desistir da empreitada, ela morreria, sem possibilidade de voar.
O amor dá ordem de prisão àquela futura mãe. A pequena abertura na parede servirá, durante duas a três semanas, para que o seu companheiro lhe entregue comida e água. Se o macho morrer, ela morre também. Mesmo neste caso extremo, porém, mesmo neste caso de consentida clausura, a divisória foi inventada para ser negada.
Usando a lógica de Manoel de Barros o que aqueles pássaros construíram não foi uma parede. Foi um buraco. O que eles edificaram foi um vazio, uma redonda ausência de tudo.
O problema é que o nosso pensamento, ao contrário das restantes entidades vivas, facilmente se encerra em si mesmo. Não sabemos fazer paredes vivas e permeáveis. Erguemos paredes inteiras como se fôssemos tucanos cegos. De um e do outro lado há sempre algo que morre, truncado do seu lado gêmeo.
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Aprendemos a demarcarmo-nos do Outro e do Estranho como se fossem ameaças à nossa integridade, mesmo que ninguém saiba em que consiste essa integridade. Temos medo da mudança, medo da desordem, medo da complexidade. Precisamos de modelos para entender um universo (que é, afinal, um pluriverso ou um multiverso) e que foi construído em permanente mudança, no meio do caos e do imprevisível. Esses modelos simplificam o que só pode ser entendido como entidade complexa e complicam o que só em simplicidade pode ser apreendido.
Temos medo dos que pensam diferente e mais medo ainda daqueles que, são tão diferentes, que achamos que não pensam. Vivemos em estado de guerra com a alteridade que mora dentro e fora de nós. Esse é o defeito original das fronteiras que fabricamos.
A própria palavra “fronteira” nasceu como um conceito militar. Vem da linguagem bélica francesa e do modo como se designava a frente de batalha. Nesse mesmo berço aconteceu um fato curioso: um oficial do exército francês inventou um código de gravação de mensagens em alto-relevo. Esse código servia para que, nas noites de combate, os soldados pudessem se comunicar em silêncio e no escuro. Essa pequena invenção viria a ter enormes consequências que superavam aquele lugar e aquele tempo. Porque foi a partir desse código que se inventou o Sistema de Leitura Braille. Para milhões de pessoas venceu-se uma pesada fronteira entre o desejo da luz e a condenação da sombra. No mesmo lugar em que nasceu a palavra “fronteira” sucedeu um episódio que negava o sentido limitador da palavra.
A fronteira concebida como vedação estanque tem a ver com o modo como pensamos e vivemos a nossa própria identidade. Essa identidade mora hoje em condomínio fechado. Uma invisível empresa de segurança impede o “Outro” de entrar nesse espaço que chamamos de “intimidade”. Somos um pouco como a tucana que se despluma dentro do escuro. Temos a ilusão de que a nossa proteção vem da espessura da parede. Mas seriam as asas e a capacidade de voar que nos devolveriam a segurança de ter o mundo inteiro como a nossa casa.
* O artigo Repensar o pensamento, redesenhando fronteiras está contido na íntegra na obra Pensar a cultura, compilação de entrevistas, conferências e outros textos organizados pelo jornalista Cassiano Elek Machado. Acesse o site da Arquipélago Editorial e conheça a série Pensar.
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