O Carnaval de Salvador vive uma crise existencial?
Raul Moreira
Jornalista e cineasta
O Carnaval de Salvador vive uma crise existencial? Apesar de todo o marketing e das propagandas governamentais, que mascaram a questão, são claros os sinais de que o carnaval apequenou-se, desfigurou-se e, pior, tornou-se elitista, algo que macula o conceito segundo o qual se trata da festa mais democrática do planeta.
Vale ressaltar que Salvador não abriga o maior Carnaval de rua do mundo. Carnaval de rua, mesmo, é no Rio de Janeiro, no Recife e, agora, em São Paulo. Hoje, cá, o que há, infelizmente, é um simulacro, um ajuntamento ordenando por um mecanismo perverso, no qual fica explícito o degrado que se estabeleceu nas relações entre o público e o privado.
Com um modelo que já dava sinal de esgotamento há muito, a logística dos organizadores do Carnaval se pauta, basicamente, em torno da privatização dos espaços públicos, da proliferação dos camarotes, que vieram a substituir as cordas enquanto elemento segregacionista.
Certo que a Prefeitura e o Governo alegam que foram criadas opções para o chamado folião pipoca, o povão, através da criação de atrações que vão do Furdunço aos palcos públicos, na Barra e em outros bairros, sem falar da contratação de estrelas para tocar em trios elétricos sem cordas.
No entanto, um olhar mais apurado revela que, no Carnaval da crise, quando muitos trios vão deixar de sair por impossibilidade econômica, o suprassumo, o objeto de desejo passou a ser o camarote. Em outras palavras: o Carnaval dos blocos de classe média e dos turistas, aquele que dava água na boca, separado do grande público pelas cordas, deu lugar ao camarote climatizado, que se transformou no paraíso dos que supostamente são e dos que querem ser.
Acreditam os estudiosos, alguns dos quais acadêmicos, que o Carnaval de Salvador não está em crise, mas, sim, carece de um novo modelo que consiga fazer coexistir a tradição, enquanto festa popular e criativa, mesmo, com a voracidade do mercado. E, ainda que o equilíbrio seja difícil, por conta da própria configuração consumista e descartável do mundo contemporâneo, se bem regado, são de parecer que o carnaval, por tratar-se de um organismo vivo, não vai sucumbir ao espírito do tempo.
A verdade é que o Carnaval sempre foi um elemento relevador do quanto Salvador é uma cidade classista, desde sempre. Basta ver, por exemplo, o que aconteceu na segunda metade do século 19. Naquele período, por conta da aplicação de medidas “civilizatórias”, quando se falava muito em “higienização social”, foram proibidas as algazarras de rua, como as famosas guerras de água e até de sêmen humano, originárias do Entrudo popular de origem portuguesa.
Em vez disto, foi institucionalizado o que se chamou na época de “festa civilizada” antes da páscoa em uma cidade repleta de escravos. Para se ter uma ideia, precisamente em 1884, o Clube Cruz Vermelha, que reunia os bens nascidos de Salvador, saiu pela primeira vez às ruas e vielas em cortejo, marcando, assim, o início do chamado Carnaval de rua de Salvador.
Como resposta, o instinto de adaptação e amalgamento da população subjugada, na sua busca pelo pertencimento ao tecido social, como aconteceu em relação ao sincretismo religioso, subverteu a ordem. O resultado é que, aos poucos, o Carnaval de Salvador virou uma algazarra coletiva, de invenção rítmica e de criatividade, base que serviu de fermento para tornar a festa soteropolitana o maior aglomerado do planeta durante certo período.
Sim, os verdadeiros dias de glória se foram. Ficou o simulacro e a pergunta que não quer calar: em que ponto da estrada o Carnaval da Bahia se perdeu? O curioso é que o documentário Axé: Canto do Povo de um Lugar, de Chico Kertész, nos oferece pistas a respeito da questão. Nele, há a clara percepção de que a transformação do carnaval de Salvador em um evento de caráter privado reflete os desdobramentos do movimento musical que explodiu nestas terras na metade dos anos 80 e se metamorfoseou em um monstro extremamente sedutor e empolgante, mas autofágico.
Passados mais de 30 anos do surgimento da axé music, eis que o diabo veio cobrar a conta. E Mefistófeles, o enviado, depois de garantir sucesso, poder e glória para tantos, curiosamente, enfrenta um empasse contratual: muitos dos que venderam a alma reclamam que ele não os dotou de fortuna eterna e de sabedoria.
Sabedoria, na verdade, seria a capacidade que cada qual teria de olhar em volta e no horizonte, de investir de forma aprofundada no próprio negócio, de retroalimentá-lo de forma consistente, pensando no futuro e na felicidade do folião, boa parte dos quais eternamente desafortunados.
Mas nestas terras o umbigo sempre foi o norte e o sentido de coletivo não existe. E Mefistófeles, com um sorriso maroto, disse que esse tipo de questão é responsabilidade de Deus.
Diante do impasse, complexo por demais, fica a sensação de que o Diabo, e muito menos Deus, seriam capazes de salvar o Carnaval da Bahia.
Pelo menos por enquanto.
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