sábado, 22 de fevereiro de 2020

A SALVADOR DOS CORDEIROS...

... E VENDEDORES AMBULANTES


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FOTO: S.O.S. BARRA

Dizem que o Carnaval é uma instância de pura alegria, sendo em Salvador, seria mais alegre ainda. 

Penso no quanto o nosso Carnaval ressalta a nossa miséria social, nossos desajustes e injustiças econômicas empurrando milhares de vidas humanas para a situação de abandono e a terrível vulnerabilidade nos muitos dias da folia soteropolitana. Ao ver uma reportagem na TV, do telejornal local mais assistido, tremi imaginando aquelas pessoas vivendo nas ruas por dez dias para vender cervejas e comidas, atendendo as multidões que se divertem alheias ao peso daquelas existências. 

Debaixo de sol, chuva e sereno, levando empurrões, comendo e dormindo mal, sem direito a banho, faltando banheiros, sendo agredidas verbal e fisicamente, enfim, desafiando a vida e pagando pelo preço da extrema pobreza desassistida.
É mais tristeza que alegria. É mais feiura do que beleza. É mais dor que alívio. A poesia do transtorno de ter que prosseguir sem saber como, quando a tal sociedade da cidade e seus infinitos visitantes já naturalizaram a miséria experimentada pelos nossos ambulantes e os cordeiros dos blocos na contínua escravidão brasileira. 

A máxima da desigualdade confrontada pelos camarotes criando a hierarquia desumana de gente: as cervejarias lucrando, os hotéis, as famílias como a Gil e a Magalhães, as marcas do poder capitalista, as grandes estrelas da música como Ivete Sangalo, Daniela Mercury e Claudia Leitte, todas brancas e de fora da ancestralidade direta que produz as músicas e os ritmos que elas cantam.


No fundo, além de ser triste, o nosso Carnaval é um acinte, um grande desrespeito para quem não consegue viver com dignidade nesta cidade. Claro que, para modificá-lo em prol de todos, teríamos que esmigalhar o sistema que efetiva estas desigualdades, matar o capitalismo. Mas o abandono governamental e social é tão grande que o repórter brinca e se alegra com o relato dos estragos que a chuva causou a duas irmãs, já antes da festa, prontas a enfrentarem dias de desgraça do evento que enriquece poucos e elas levam quase nada do troco para casa.

Eu não nego os instantes da profunda beleza que a criatividade e resistência do nosso povo causam durante o Carnaval. É impagável ver Os filhos de Gandhy e o Ilê Ayiê. Também os outros focos de grandeza e persistência como os micro-trios e tudo que gere espontaneidade a favor do bem-estar de todos e todas. Mas todos e todas que podem se divertir não dimensionam e se calam frente ao crime social sofrido por ambulantes e cordeiros. 
Governo nenhum os enxerga. 

Somos uma cidade de cultura riquíssima, onde nosso povo, construtor desta riqueza, vive na perversa pobreza espelhada nos trabalhadores de rua no Carnaval da Bahia. 
O rasgo na carne é Carnaval, mas o sangue é tristeza.


MARLON MARCOS
Jornal A Tarde
Sábado 22 fevereiro 2020.

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