quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

SALVE CHICO E ALBA LIBERATO



Resultado de imagem para fotos de chico liberatoQuando li este artigo de Dimitri Ganzelevitch, publicado no seu blog e no jornal A Tarde, senti-me na obrigação de acrescentar algumas linhas à sua justa homenagem à família Liberato. É que sua história, por incrível que pareça, é muito próxima da minha, pelo menos no que tange a alguns lances de solidariedade, embora ocorridos em épocas e circunstâncias diferentes. Fiquei mesmo impressionado com certas coincidências, que só depõem a favor desses queridos amigos, demonstrando que os acontecimentos narrados por Dimitri não são meramente circunstanciais. Antes de tudo registram uma marca de caráter, pois Chico e Alba são as duas pessoas mais solidárias e amigas que já conheci.

Em meados da década de 1960 eu estava no Rio, recém-chegado do exilio imposto pelo golpe de 1964. Então revolucionário profissional, fodido, clandestino, sem dinheiro, fugindo daqui para ali, muitas vezes dependia da ajuda dos amigos legais para sobreviver, alguns orbitando em torno das organizações ligadas à resistência à ditadura, outros mais à distância, mas nem por isso menos conscientes do grave momento que atravessávamos. Chico tinha se casado havia pouco tempo com Alba e foram morar numa rua tranquila de Santa Teresa. Formava, com Antônio Dias (também morador de Santa Tereza), Rubens Gerchman e outros artistas, a nova tendência das artes plásticas no Brasil. Creio que foi lá pelos idos de 1966 que eles me acolheram, pois eu estava sem ter onde cair morto e não podia ir para casa de parentes, muito visadas pela polícia. Alba estava grávida de Ingra, uma gravidez difícil, pois enjoava muito e eu fazia o que podia para dar-lhe apoio. Peguei Ingra recém-nascida nos braços. Fiquei lá um tempão, e apesar dos apertos financeiros do casal, nunca me faltou uma boa sopa, quando a grana da alimentação escasseava. Talvez eles nem saibam que, na sua ausência eventual, algumas vezes promovi reuniões com os companheiros de organização nessa casa. Enfim, recebi teto, comida e apoio logístico na atividade política.

Tempos depois o casal foi para São Paulo, para uma daquelas cidades do ABC, salvo engano Santo André. Eu, por meu turno, solto de uma prisão às vésperas do AI-5, tive que sair fugido do Rio e fui parar também em São Paulo. Lá voltamos a nos ver; de vez em quando eu ia filar o almoço na casa deles. Lembro que nessa época Chico sobrevivia como lexicólogo, descrevendo palavras para o dicionário de uma editora paulista. Nesse trabalho, tinha como parceiro o saudoso cineasta Tuna Espinheira, também embrenhado naquela cidade. Na luta pela sobrevivência, valia tudo.

Finda a temporada paulista, escondi-me por uns tempos em Itapetinga, na Bahia − tinha sido condenado pela Auditoria Militar da Aeronáutica no Rio – e depois resolvi me mudar para Salvador. Isto foi no final de 1971, a época mais dura da ditadura. Aqui chegando, mais uma vez, foram Chico e Alba que me acolheram, num apartamento em que moravam em Nazaré, na ladeira que ia dar na parte baixa da Fonte Nova. Fiquei lá até poder alugar um apartamento para mim, junto com um velho amigo.

Desde então, nunca mais nos separamos. Apesar de ter ido morar na região da Costa do Descobrimento, onde passei um bom pedaço de vida, sempre que vinha a Salvador ia visitá-los. Acompanhei a sua trajetória à frente do MAM, com grandes realizações, e no ano 2000 promovi uma exposição de suas obras com Ângelo Roberto e Jair Gabriel em Porto Seguro numa galeria de arte que eu possuía na Cidade Histórica.

De certo modo, acompanhei o nascimento de todos os filhos de Chico e Alba, e asseguro que o destino deles não tinha como fugir da arte. Chico e Alba não são apenas artistas plásticos. Alba é poeta e escreve projetos artísticos e roteiros para cinema para ninguém botar defeito. Chico é também cineasta, tendo se dedicado particularmente à animação. Nessa esfera, a música desempenha um papel fundamental. Então se pode dizer que naquela casa da Estrada Velha do Aeroporto que construíram como seu paraíso pessoal, sempre se respirou arte: pintura, cinema, artes plásticas, música e literatura. Por isso é que pude contar com a presença de Chico e Alba nos lançamentos de quase todos os meus livros.

Fico muito feliz com o sucesso dos filhos da família nas carreiras artísticas que escolheram. Sobretudo porque sei o que foi atravessar essa vida: das dificuldades, da luta pela sobrevivência, do pouco reconhecimento, do esforço contínuo pelo crescimento intelectual, das perseguições e das decepções. Tudo mantendo a cabeça erguida e sem perder em nenhum momento esse traço fundamental da natureza humana que é a solidariedade. Como Dimitri, sinto uma enorme ternura por esta querida e grande família.

Paulo Martins 
Lisboa, 27 de fevereiro de 2020

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