quarta-feira, 3 de novembro de 2021

SOBRE NELSON FREIRE

 


Em março de 2009, cheguei à casa de Nelson Freire no Joá com o objetivo de entrevistá-lo para a coluna Dois Cafés e a Conta. Ele estava ensaiando e não quis interrompê-lo. Sentei-me perto do estúdio e aguardei que terminasse. Nunca uma espera foi tão boa. Enquanto contemplava o mar, fui brindado com uma audição exclusiva do Concerto em Lá Menor de Grieg executado pelo único brasileiro na lista dos cem melhores pianistas de todos os tempos.

O dia já estava ganho, ainda que a coluna não rendesse tanto. Afinal, Nelson Freire era um dos sujeitos mais retraídos que havia. Tanto que o cineasta João Moreira Salles, que fez um documentário primoroso sobre o músico, só se arriscou a entrevistá-lo no último dia de filmagens, após dois anos de trabalho.
Ou seja, minhas chances de conseguir extrair algo original do artista eram pequenas. Mas dei sorte. Ele, conhecido por ser gentil e afável, estava também falante. Tanto que eu é que tive que interromper a conversa, para voltar à redação do Globo.
Ele contou muitas histórias. Falou da infância, da amizade com a pianista argentina Martha Argerich, do CD novo que havia lançado há pouco, "Debussy", da cultura fast-food que o obrigava a viajar muito apesar de odiar ter que pegar avião - chegara a dar três concertos numa semana, com três programas diferentes, em três continentes distintos, América, Europa e Ásia. E, quando a coluna foi publicada, ele já tinha embarcado para uma turnê de 26 concertos em dois meses. Ainda que morasse em Paris, me disse que o Rio era sua casa.
- Mas não gosto nada da realidade do Rio e do Brasil. Gosto do cheiro do Rio, do céu, do sol, do mar, das comidinhas, das lembranças.
O músico dizia que lia jornal, mas sofria.
- Fico muito deprimido. Gosto de ler o Horóscopo e as crônicas de seu pai e do Verissimo.
A propósito disso, Freire me contou uma história divertida:
- Eu tinha lido uma crônica do seu pai sobre nomes estranhos. Eu sou muito tímido, e o Verissimo também. Estávamos os dois, eu e Verissimo, na Embaixada do Brasil na França. Sentamos na mesma mesa. Eu queria fazer um progresso no sentido de ser mais social, de sair dessa minha timidez. Resolvi então bater um papinho com ele, um cara que admiro. Falei: "Adoro aquela crônica sua dos nomes estranhos." Ele sorriu sem graça, e disse: "Ah, é?". Percebi que tinha me enganado de pessoa, que estava elogiando o Verissimo por uma crônica que tinha sido escrita pelo Zuenir! Fui diminuindo, diminuindo, e pensei: "Vamos ficar por aqui mesmo..."
E foi assim que naufragou uma das raras tentativas de Nelson de se tornar mais sociável.
O curioso é que Verissimo também se confundiu. Passou o jantar inteiro achando que estava conversando com o também pianista Miguel Proença. Verissimo chegou a narrar a história na crônica "Patetice": "Nelson não acusou a gafe e respondeu educadamente a todas as minhas perguntas sobre o domicílio, a agenda de concertos e a vida pessoal do Proença, sem dúvida recorrendo à ficção”.
Nelson recusava o estrelato. Quando comentei sobre sua inclusão entre os maiores pianistas de todos os tempos, me corrigiu:
- Para começar, não acho isso, não, pelo contrário. E Deus me livre a vaidade! A música é muito sagrada para se ter esse tipo de atitude. Isso faz mal para a música.
Foi uma tarde inesquecível ao lado de um dos mais geniais artistas que o Brasil já teve.
Dois anos depois, voltamos a nos encontrar, dessa vez no café da Livraria da Travessa de Ipanema, onde ele acabara de lançar seu novo disco, "Liszt: Harmonies du soir". Eu estava de folga, mas não ia perder a chance de fazer uma reportagem exclusiva, que saiu publicada no Segundo Caderno. Nelson estava contente de retornar ao Rio:
- Preciso de um pouco desse arzinho daqui para recarregar as baterias.
Nelson estava feliz. O governo francês o agraciara com a Legion D'Honneur, a UFRJ concedera-lhe o título de Doutor Honoris Causa e o disco de Liszt vinha recebendo elogios unânimes. Mas afirmava não ler as críticas:
- Se são ruins, fico deprimido. Se são boas, corro o risco de ficar vaidoso.
Não havia esse risco, ele sabia. Conversamos sobre muitos assuntos, como a crise na OSB (Orquestra Sinfônica Brasileira), o fato de não ouvir seus próprios discos ("Se ouço, fico querendo mudar"), a escolha do repertório do atual CD, quais eram os próximos trabalhos e a difícil infância em Boa Esperança, Minas.
- Eu tinha asmas e alergias, não podia brincar, subir em árvores. Não podia comer nada, às vezes só podia ficar com a boca, os olhos e o nariz de fora, o resto tudo cheio de curativos. E o colégio era horrível. Não existia essa palavra, mas certamente sofri bullying - lembrou.
Para sorte de Nelson e de todos nós, ele encontrou no piano seu refúgio.

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