quinta-feira, 13 de março de 2025

SEM O MERECIDO ALARDE

 

“No Other Land”, vencedor do Oscar de melhor documentário, estreia no Brasil sem o alarde merecido

Por Maria do Rosário Caetano

“No Other Land” (“Outra Terra, Não!”) — rebatizado no Brasil com o discreto título de “Sem Chão” — conquistou, semana passada, o Oscar de melhor longa documental. Mas sua premiação não gerou a comoção esperada. Não repercutiu como a de “Ainda Estou Aqui”, no Brasil, “Flow”, na pequena Letônia, ou “Anora”, nos mercados internacionais.

E por que isso aconteceu com este documentário tão importante, cuja estreia se dá nessa quinta-feira, 13 de março, em nossos cinemas?

A razão primeira parece ligada à sua origem geopolítica: um filme produzido em um “não-Estado”, em um “não País” – a Palestina. E, o que torna tudo ainda mais singular — fruto da ação de quatro diretores, dois deles nascidos palestinos (Basel Adra e Hamdan Ballal) e dois cidadãos de Israel (Yuval Abraham e Rachel Szor). O quarteto somou forças e energias, generosidade e fraternidade, coragem e solidariedade. O resultado é espantoso e desconcertante.

O filme correu festivais no mundo inteiro, ganhou mais de 30 prêmios (além do Oscar!), em festivais da grandeza de Berlim, Visions du Réel, na Suíça, o descolado CPH-DOX de Copenhague, o IndieLisboa e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Em outubro do ano passado, “No Other Land” foi um dos filmes mais procurados pelo público do festival paulistano. A cada sessão aberta, os ingressos se esgotavam, seja por compra digital (em questão de minutos) ou presencial (em menos de uma hora).

Faz-se necessário saber um pouco sobre os quatro diretores de “Sem Chão”.

O palestino Basel Adra é advogado, jornalista e cineasta, filho de preso político, ativista e realizador de documentários desde a adolescência. Hamdan Ballal, também palestino, é fotógrafo, documentarista, agricultor e ativista de Direitos Humanos. Os dois têm a comunidade de Masafer Yatta como território de vida e ação.

O israelense Yuval Abraham é jornalista investigativo, atuante em Jerusalém, e diretor estreante. Rachel Szor, também cidadã de Israel, é diretora de fotografia, montadora e cineasta.

Para realizar este que é o primeiro longa-metragem do quarteto, eles enfrentaram ventos e tempestades, armas e tanques, máquinas demolidoras de edificações (até playgrounds criados para amenizar a vida das crianças criadas em área tão conflituosa). Sim, escavadeiras que destruíram – e continuam destruindo – casas, escolas, estradas, galinheiros, plantações. E capazes de despejar cimento em poço de abastecimento de água, inutilizando-o. Agindo, assim — entendem os ocupantes —, desprovidos de moradias, eletricidade e água para suprir necessidades básicas, os palestinos desocupariam o “campo de treinamento”. Mas eles insistem. Aquele é o seu chão.

Tudo acontece em Masafer Yatta, um dos 19 vilarejos da Cisjordânia ocupada. O governo de Israel, comando por Benjamin Netanyahu, em coalisão que soma a direita à extrema-direita, transformou a área em “zona de tiro” (ou “campo de treinamento”). Com soldados e colonos, estes cada vez mais militarizados, em ação, os moradores e seus pequenos rebanhos vivem em permanente desassossego.

A destruição de casas e pequenas lavouras (de oliveiras) causa revolta crescente. Os palestinos vivem na parte árabe da região. São 5,2 milhões de habitantes distribuídos em pouco mais de 6 mil km2 (vivem em Israel quase 10 milhões de habitantes, incluídos os moradores das Colinas de Golã e Jerusalém Oriental, distribuídos por mais de 20 mil km2).

Indignado com a situação de sua gente, o jovem advogado Basel Adra começou a documentar cada ação dos soldados e colonos israelenses. Durante cinco anos (de 2019 a 2023), montou poderoso acervo de imagens. Contou, então, com a valiosa ajuda do conterrâneo Hamdan Ballal e, em especial, de Yuval Abraham e Rachel Szor. Juntos, captaram novas imagens, roteirizaram o material recolhido, montaram e produziram (com apoio da Noruega) “No Other Land”, um filme de 96 minutos.

Exibido no Panorama Documentário, do Festival de Berlim, o longa recebeu o prêmio máximo do júri da categoria e também do Público. Dali em diante, novos reconhecimentos se multiplicariam. Na luta pelo Oscar, o quarteto de diretores festejou a condição de ser um dos 15 semifinalistas à badalada estatueta e, depois, a presença na lista de cinco finalistas. Largou na condição de franco favorito.

Para triunfar, o filme palestino necessitava ser visto. Só assim conseguiria aglutinar a maioria dos votos dos integrantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. O desafio era conseguir um distribuidor que o lançasse no circuito de salas (pelo menos em Los Angeles e Nova York). Por pressão externa, não conseguiu contrato com nenhuma distribuidora. Incansável, o quarteto se virou e conseguiu, de moto próprio, algumas salas para lançar o documentário. Conquistou corações e mentes e derrotou seus quatro concorrentes – “Trilha Sonora para um Golpe de Estado” (Bélgica), “Diários da Caixa Preta” (Japão), “Sugarcane” (Canadá-EUA) e “Guerra da Porcelana” (Ucrânia).

Em Israel, Yuval Abraham e Rachel Szor são tachados como “antipatrióticos” pelos partidos de direita e extrema-direita. Como registrou a jornalista e cineasta Dorrit Harazin – em seu artigo “Impossível Desver” (O Globo, 09/03/2025) –, o ministro da Cultura e Esportes de Israel, Miki Zohar, “instruiu entidades nacionais a não divulgar obra que, no seu entender, calunia Israel no cenário global”.

A pulsão de vida que captamos em cada imagem colhida pelos quatro diretores, seja com câmeras profissionais ou um mero celular – nos revelam a luta da gente simples de Masafer Yatta, composta de pequenos agricultores e pastores, assombrados por combate desigual. Os israelenses, sejam soldados ou colonos, contam com escavadeiras, armamento de ponta e poderosos recursos financeiros. Já os palestinos do povoado lutam pela mera sobrevivência.

Veremos, num dos momentos mais dramáticos do filme, um velho morador da Cisjordânia protestando contra o confisco de seu gerador de luz elétrica. Ferido por um militar israelense, acabará tetraplégico. Desalojado de sua casa, irá morar com familiares em uma caverna.

O que vem mobilizando cinéfilos, mundo afora, é a realização do filme a oito mãos, quatro palestinas e quatro israelenses. Prova irrefutável que os dois povos podem viver próximos um do outro. E trabalhar juntos. Portanto, não é utópica a existência de dois estados. Lamentavelmente, desde 1948, a ONU (a hoje fragilizada Organização das Nações Unidas) só garantiu a existência de um estado – o de Israel. A Palestina segue sem reconhecimento.

Assistir a “No Other Land” é um dever cívico. É poder conhecer mais sobre a terrível realidade vivida por povo que vê, a cada novo dia, mais soldados e colonos ocupando suas terras.

 

Sem Chão | No Other Land
Palestina-Noruega, 2024, 96 minutos
Direção, roteiro, fotografia, montagem e produção: Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor
Coprodução: Fabien Grinberg e Bard Kjege Ronning
Música: Julius Polly Rothlaender
Desenho de som: Bard Harazi Farbu
Distribuição: Synapse

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