Marc Riboud, o fotógrafo da China de Mao e da "rapariga da flor"
Histórico do fotojornalismo francês, notabilizou-se pela cobertura da China da revolução comunista e das independências africanas, mas foi por causa de uma manifestação em Washington que ficou na memória de muitos. Morreu aos 93 anos.
Recebeu a sua primeira máquina fotográfica, uma Kodak Vest Pocket, quando tinha 14 anos. Foi um presente do pai, o mesmo que insistiu para que estudasse Engenharia. Marc Riboud, um dos históricos do fotojornalismo francês, morreu na terça-feira em Paris, aos 93 anos, noticiou a AFP. Segundo o diário norte-americano The New York Times, sofria de Alzheimer.PUB
Trabalhando para importantes publicações ao longo de mais de 60 anos de carreira – Life, Geo, National Geographic, Paris-Match, Stern, Look,The Observer, The Times –, chegando a assinar alguns dos textos que acompanhavam as suas grandes reportagens fotográficas, Riboud deu-nos sempre a sua visão humanista do mundo. É essa abordagem sensível à realidade, sublinhada por críticos e historiadores da fotografia a cada nova exposição sua, a cada novo livro, que os obituários agora evocam. Isto, a par da mestria com que dominava o preto e branco e a cor, criando imagens que ficavam impressas na memória, cristalizando momentos da história através de lugares e protagonistas, como o Presidente da Polónia Lech Walesa, o líder comunista vietnamita Ho Chi Minh, o fundador da República Popular da China Mao Tsetung, o histórico revolucionário cubano Fidel Castro ou o oficial nazi Klaus Barbie, o "carniceiro de Lyon", condenado por crimes contra a humanidade em 1987.
Mesmo os que não conhecem o seu trabalho, é muito provável que já se tenham cruzado com alguma das suas fotografias da China de Mao, do Vietname ou do Camboja. Mesmo os que nunca viram as suas reportagens no Extremo Oriente e no continente africano – fotografou intensamente o Japão e os processos independentistas – é natural que já tenham sido confrontados com uma das suas imagens mais celebradas, a de uma jovem chamada Jan Rose Kasmir que, segurando apenas uma flor, enfrenta a Guarda Nacional Americana durante uma manifestação no Pentágono em 1967, um protesto que viria a ser fundamental para colocar a opinião pública definitivamente contra a Guerra do Vietname.
“Marc foi o homem que mais fotografias históricas fez durante a vida”, disse ao diário francês Le Monde Jean-François Leroy, director do festival de fotojornalismo Visa pour l’image, em Perpignan, que nesta edição consagra uma das exposições a Riboud, centrando-se na sua reportagem em Cuba, em 1963, ano em que teria a sua primeira individual, no Art Institute de Chicago.
“Muitos fotógrafos se inspiraram nele sem jamais o igualar.” É também o seu talento para se aproximar das pessoas e captar a realidade em momentos-chave que Alain Genestar, director da revista Polka, especializada em fotojornalismo, destaca: “Marc Riboud era um fotógrafo-andarilho (…). Sabia captar tão bem momentos singulares, com grandes figuras mundiais, como cenas de rua.”
Colocado perante momentos que ficariam para a história, Marc Riboud não foge às figuras que são notícia, mas também não se concentra exclusivamente nelas. Das centenas e centenas de fotografias que tirou em países como a China, o Camboja, o Bangladesh, a Índia, o Tibete, o Paquistão, a Turquia ou o Japão, apenas um punhado se centra em pessoas, sobretudo líderes políticos, que viriam a merecer a atenção de historiadores e outros académicos, escreve o New York Times, num texto em que noticia a sua morte e em que lembra, entre outras coisas, que o fotojornalista francês sempre soube encontrar “momentos de graça” nas situações mais duras com que se foi cruzando em todo o mundo, muitas delas em cenários de conflito.
Riboud fotografa os incontornáveis – de Charles de Gaulle ao ayatollah Ruollah Khomeini, de Mikhail Gorbatchov a Indira Gandhi, passando por Willy Brandt, Winston Churchill, Jawaharlal Nehru e Deng Xiaoping – mas também os miúdos que parecem brincar aos polícias e ladrões nas ruas de Xangai, as mulheres rodeadas de crianças numa fonte de Istambul, as festas de aristocratas na Irlanda do final dos anos 70 ou dois homens à conversa numa esquina de Argel, em 1963, um ano depois de declarada a independência da ex-colónia francesa.
Saber olhar
Nascido em 1923, perto de Lyon, numa família de banqueiros e industriais, Marc Riboud recebeu do pai, fotógrafo amador, a primeira câmara, um instrumento com que este esperava compensar a timidez do quinto dos seus sete filhos. “Se não sabes falar, talvez saibas olhar”, ter-lhe-á dito, escreve esta quarta-feira o jornal Libération.
No começo a fotografia é apenas o passatempo de um rapaz burguês que fizera algumas imagens na Exposição Universal de Paris, em 1937, e que em 1944 se iria juntar à resistência francesa para combater os alemães. Só nove anos mais tarde, e depois de completado o curso de Engenharia Mecânica em 1948, passa a ser uma ocupação a tempo inteiro e a título oficial, quando Riboud entra para a prestigiada agência Magnum, a convite de dois dos homens que a tinham fundado em 1947, Henri Cartier-Bresson e Robert Capa. Os dois fotojornalistas tinham visto nas páginas da revista Life aquela que viria a ser uma das suas fotografias mais reproduzidas – conhecida como “Pintor da Torre Eiffel”, mostra um operário em equilíbrio, de cigarro na boca, que parece saído de um filme de Chaplin.
Cartier-Bresson, aliás, fora-lhe apresentado pouco tempo depois de Riboud se ter mudado para Paris, em 1952, passando a ser o seu mentor (Capa também ajudou). Dizia-lhe que livros ler e que exposições visitar, lembrou o fotojornalista ao New York Times: “Ensinou-me coisas sobre a vida e sobre a arte da fotografia.”
Mostrou-lhe, por exemplo, que uma boa fotografia também dependia de uma boa geometria (como no caso do operário chaplinesco) e que a olhar para as obras dos mestres da pintura antiga dos grandes museus se aprendia muito mais sobre composição do que a ler livros. Aprendia-se a criar algo intemporal.
Com a chegada à Magnum, Marc Riboud transforma-se no viajante incansável que seria praticamente durante toda a sua vida. Em 1957 é um dos primeiros europeus a percorrer, fotografando, a China comunista, território que troca pelo Japão, primeiro, e depois pela URSS. Era lá que estava havia três meses quando é chamado para cobrir os movimentos independentistas na Argélia e na África subsariana (Gana, Nigéria, Guiné).
Estava-se em 1960. O final dessa década – 1968/1969 – encontra-o no Vietname, território hostil, em guerra, onde poucos fotógrafos eram autorizados a entrar e ainda menos eram capazes de se movimentar sem dificuldades de maior entre o Norte e o Sul.
Em 1973 está nos Estados Unidos para acompanhar o "caso Watergate", o grande escândalo político da Administração Nixon. Seis anos mais tarde, volta a cruzar-se com a América, desta vez em Teerão. Está a cobrir a revolução iraniana quando a embaixada dos EUA na capital é ocupada e os seus funcionários feitos reféns.
Riboud fotografa intensamente para a agência precisamente até 1979, quando decide sair por não lhe agradar, explicou, a “luta pela glória” que ali se promovia. Nas décadas de 1980 e 90 regressa com frequência à Ásia, em particular à China, cujas mutações, registadas em dois livros (40 Ans de Photographie en Chine e Demain Shangai), acompanha durante 40 anos.
Escreve o diário norte-americano que, ao contrário de alguns fotógrafos, que temem ver o seu trabalho reduzido a duas ou três imagens, Marc Riboud não se importava de explicar, uma e outra vez, em que circunstâncias tirara a fotografia do pintor na Torre Eiffel ou da “rapariga da flor”, garantindo que a nenhum deles pedira para posar.
“Sempre fui tímido e sempre tentei ignorar as pessoas que fotografava para que elas também me ignorassem”, dizia o homem que em 2000, num ensaio a que deu o título de Pleasures of the Eye, resume assim a sua relação com a fotografia: “A minha obsessão é fotografar a vida naquilo que tem de mais intenso e o mais intensamente possível. É uma mania, um vírus tão forte como o meu instinto de liberdade.”
Mostrar o mundo que muda
Objecto de grandes exposições em Paris, Londres, Xangai, Tóquio ou Nova Iorque, Marc Riboud recebeu inúmeros prémios ao longo da sua carreira (o Infinity Award do Centro Internacional de Fotografia, o Leica de Carreira e o Nadar) e publicou vários livros, entre eles L’Instinct de l’Instant e Vers l’Orient. Mas isso nunca impediu que se sentisse “envergonhado” ao falar do seu trabalho.
Para ele fotografar era andar à procura de uma surpresa visual, dentro de uma forma bem estruturada, sem a pretensão de ser uma testemunha da história. “Testemunha”, aliás, era palavra de que não gostava. É verdade que assistiu a momentos-chave do século XX, mas também é verdade que rejeitava associar o termo “objectividade” a fotojornalismo ou a outra coisa qualquer. “A ideia da fotografia como prova é pura treta”, dizia numa conversa com outro fotógrafo da sua geração, o croata Frank Horvat (1928-). “A fotografia não dá mais provas de uma realidade do que aquilo que alguém diz numa conversa de autocarro.”
Viajava por alguns países – China, Vietname, ex-Jugoslávia, Índia – com a certeza de que regressaria, mesmo quando isso o colocava em risco. “Sinto-me atraído pelo perigo, tal como me sinto atraído por uma mulher bonita”, admitia. Para Riboud a surpresa residia na possibilidade de voltar a olhar para um lugar que já conhecia para nele descobrir coisas novas e não na chegada a um lugar novo.
Num dos trabalhos que põe em destaque no seu site oficial, publicado originalmente no livro Le Trois Bannières de la Chine e depois na revista Camera, em 1967, explica por que razão “a única maneira de descobrir a China é olhando para ela”: “Em qualquer outro sítio o contacto humano ajuda. Na Argélia, em Varsóvia, São Francisco, Cuba, Moscovo, etc. Inumeráveis trocas e conversas com estudantes, membros de sindicatos e artistas ajudam a completar e acrescentam significado às nossas impressões visuais. Isto não é possível na China. Para um estrangeiro, mesmo que fale chinês, a comunicação directa e espontânea praticamente não existe. Não são só a linguagem e os costumes que são diferentes. A própria maneira de pensar e as razões para viver são mais umas cortinas a mascarar a fachada oriental. (…) É por isso que é melhor ver do que ouvir.”
Regressar era importante para alguém que acreditava que “a fotografia não pode mudar o mundo, mas pode mostrar o mundo, sobretudo quando ele muda”. Mostrá-lo com a câmara sempre a funcionar como um escudo, como uma desculpa para se aproximar das pessoas, algo que lhe seria terrivelmente difícil sem esse intermediário.
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