Estou escrevendo essas linhas imediatamente depois de participar de uma reunião geral do Núcleo Criativo Ondina, em Salvador. Na verdade, uma imersão de quatro dias, envolvendo a preparação de seis projetos audiovisuais (uma telessérie infantil-musical, uma telessérie documental e quatro filmes longos de ficção), uma dúzia de criadores (roteiristas e diretores) e uma equipe de produção com seis pessoas. Estamos trabalhando há sete meses e ainda temos um tempo pela frente para terminar os projetos e encaminhá-los a empresas produtoras, canais de TV e editais.
O programa Núcleos Criativos foi lançado pela Ancine em fins de 2013, em conjunção com o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul-BRDE, com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual. Seu propósito é desenvolver uma Carteira de Projetos de obras audiovisuais brasileiras de produção independente, visando sua maior qualificação para serem produzidas e distribuídas. Os Núcleos Criativos são definidos pela Ancine como “reunião de profissionais criadores, organizados por empresa brasileira independente, com a finalidade de desenvolver projetos de forma colaborativa”. Neste momento, 69 Núcleos estão operando em todas as regiões do Brasil e outros 14 serão autorizados em 2017, através de seleção por chamada pública. Cerca de 350 projetos já foram desenvolvidos.
Esses grupos de colaboração, além de serem superúteis, estimulantes e deliciosos para os criadores, representam um avanço considerável na inserção do Brasil na nova fase da atividade audiovisual que estamos vivenciando. O velho e bom cinema expandiu-se em várias mídias e linguagens e formatos, a constante renovação das tecnologias da comunicação abrem novos caminhos de percepção e novas necessidades inventivas, a dramaturgia audiovisual tomou a forma de um polvo, de uma cabeça de Medusa isonômica (igualmente boa e má). Um cenário que se estende das linguagens estéticas aos modelos de negócio e necessita de novos entendimentos, procedimentos e players.
Aqui e agora
Essa adequação do Brasil aos novos tempos audiovisuais teve início quando, não faz muito tempo, mas antes tarde do que nunca, as fontes produtoras (Estado, empresas de radiodifusão) passaram a valorizar o roteirista como elemento básico da criação. Antes tarde porque, ainda no século XX, já se sabia que os roteiristas eram a base da cadeia criativa das grandes centrais de produção e distribuição (Hollywood, TV), a interface inicial da rede de trabalho coletivo que inclui os outros autores audiovisuais (diretor, fotógrafo, editor, ator). Depois dessa percepção tardia, o foco da gestão de obras audiovisuais começou a mudar, a Ancine abriu linhas de financiamento para o desenvolvimento de projetos e surgiram os Núcleos Criativos.
Os avanços tecnológicos não faltarão nos próximos anos, até 2020 estão previstos progressos significativos no que se refere à Malha Digital Inteligente, à Internet das Coisas e às ditas tecnologias absorventes como Realidade Virtual, Realidade Aumentada, Machine Learning. Avanços que incidirão na criação de obras audiovisuais e na sua difusão. Em paralelo a isso, os artistas e produtores têm diante dos olhos e de suas sensibilidades um Brasil em plena e desesperada mutação, vivendo um momento crucial de sua História que tem de ser traduzido, analisado e posto em questão nas telas do País e do mundo. Para responder a essa missão, a esse desafio, nossos criadores devem estar preparados para usar todas as novas possibilidades técnicas e artísticas que estão se dilatando no século XXI. Expor o Brasil de agora, dentro do mundo de agora.
Histórias do Brasil
O trabalho colaborativo, coletivo, interativo dos Núcleos Criativos ampliam nossa capacidade de ver e refletir esse Brasil convulso, de diagnosticar nossos males e ser eficientes na composição de obras que, mesmo sem dar respostas (que não é uma função da arte), possam dar forma a todas as perguntas, anseios, incertezas, dúvidas que nos atormentam nessa travessia histórica, social e emocional. Mergulhar nas nossas profundezas. Pelo que averiguei com funcionários da Ancine e colegas de outros Núcleos, a maioria dos 350 projetos desenvolvidos vão nessa direção.
Também posso acreditar nisso se tomar como referência os filmes e telesséries que estão sendo elaborados no Núcleo Criativo Ondina. Os projetos aplicam ao Brasil contemporâneo temas como preconceito, raiva social, corrupção do poder, drogas, medo do futuro, baixa estima e contrapartidas como a reinvenção de si mesmo e a redenção através do humanismo, o poder de ressurgimento da Fênix, a volta por cima tão cara à nossa cultura mestiça. Temos de filmar tudo que nos diz respeito com as ferramentas de ponta do presente e o sentimento agudo do futuro. E para isso temos de estar preparados, porque o mundo é outro e o cinema também.
Por Orlando Senna, escritor e cineasta
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