terça-feira, 19 de janeiro de 2021

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Patrimônio ocioso

As lições de Barcelona para as cidades brasileiras na batalha contra imóveis vazios

Mariana Chiesa
Bianca Tavolari

A poucas quadras de atrações turísticas como a Casa Milà e a Casa Batlló, o edifício do número 89 da rua Pau Claris não chama a atenção de quem passa pelos arredores da Gran Via, em Barcelona, na Espanha. Um prédio de esquina, com quatro andares e janelas com varanda, um representante dentre tantos outros da arquitetura modernista do Eixample e das inconfundíveis quadras octogonais de Cerdá. No entanto, este imóvel, abandonado desde 2012, é um importante ponto de tensão na cidade: foi o primeiro caso de aplicação concreta da política urbana de cumprimento da função social da propriedade iniciada pela prefeita Ada Colau. Em 2019, a empresa proprietária recebeu uma multa no valor de 2,4 milhões de euros. Se o prédio continuasse desocupado, passaria a integrar a lista de imóveis passíveis de desapropriação.

Há uma dificuldade comum em grandes centros urbanos ao redor do mundo: garantir que imóveis desocupados ou abandonados por proprietários e proprietárias sejam de fato utilizados. Este é um quadro que revela situações crônicas de desigualdade, que se agravam em tempos de crise econômica, como é o caso da pandemia que estamos atravessando.

Cidades como Barcelona estão desenhando novas estratégias para buscar garantir a maior utilização desses imóveis ociosos. Desde a crise de 2008, a capital catalã sofre com um grande número de imóveis vazios, em razão de uma estagnação do mercado imobiliário na Espanha. É, também uma das cidades espanholas com as maiores altas nos preços dos aluguéis. Porém, nos últimos anos, o governo local vem desenvolvendo medidas regulatórias e programas no intuito de viabilizar uma destinação de interesse social a essas propriedades.

A legislação aprovada pela Catalunha em 2019 passou a prever a possibilidade de expropriação de imóveis não ocupados por mais de dois anos, mediante o pagamento de 50% do valor de mercado, garantindo a posterior destinação para habitação de interesse social. O decreto n.17/2019 detalhou a Ley Catalana de Emergencia de la Vivienda de 2016, que já previa a possibilidade de expropriação compulsória para fins de moradia. Uma outra lei, aprovada ainda em 2007, determinou que vazio é todo imóvel sem uso por ao menos dois anos. Durante a pandemia, foi criado programa para disponibilizar, de forma emergencial, propriedades turísticas de uso eventual para o alojamento de famílias vulneráveis.

O exemplo de Barcelona retrata a capacidade do governo local de diversificar as estratégias para intervir em propriedades ociosas, utilizando a desapropriação como forma de punição ao proprietário na perspectiva econômica.

Caso brasileiro

A tentativa de traçar um paralelo entre a experiência catalã e o Brasil revela entraves jurídicos que dificultam a adoção de medidas similares na política habitacional no contexto das cidades brasileiras. Mas esses obstáculos não inviabilizam a adoção de políticas semelhantes por aqui. Pelo contrário.

Ao mesmo tempo que a legislação brasileira possui mecanismos voltados a garantir a função social da propriedade, temos um histórico de aplicação da norma bastante conivente com proprietários e proprietárias que descumprem a função social. Não sem razão vivemos um dos mais desiguais acessos à moradia no mundo.


Desde a Constituinte, propriedades não parceladas, não edificadas ou não utilizadas deveriam ser punidas, começando pela compulsoriedade do parcelamento, edificação ou utilização (PEUC), passando pelo IPTU progressivo no tempo e podendo chegar na desapropriação-sanção. Criou-se uma exceção na forma de pagamento, não mais em dinheiro, mas em títulos da dívida pública, por isso o caráter sancionatório.

Na prática, a aplicação deste instrumento encontrou uma série de obstáculos, começando pela necessidade de lei específica e, muitas vezes, decreto para organizar a forma de notificação, cobrança e outros trâmites.

Mesmo em cidades que já regulamentaram a punição, há problemas de implantação. O município de São Paulo, por exemplo, promoveu a regulamentação dos instrumentos de parcelamento, edificação e uso compulsórios desde 2002, mas a aplicação foi regulamentada apenas em 2014, doze anos depois. No entanto, a partir da troca da gestão de municipal em 2017, houve uma descontinuidade, com uma significativa diminuição das notificações aos proprietários de imóveis não ocupados. 

Outro obstáculo relevante diz respeito à possibilidade de utilizar a ferramenta da desapropriação-sanção. No momento, há resolução do Senado Federal que impede a emissão de títulos da dívida pública por municípios, o que inviabiliza a utilização deste instrumento.

Mais do que isso, no tema da desapropriação, há um entrave decorrente da consolidação de entendimentos doutrinários e jurisprudenciais de que a “justa indenização” prevista no texto da Constituição Federal diz respeito ao pagamento do real e efetivo valor do bem.

Na hipótese geral de desapropriação, convencionou-se calcular a indenização ao proprietário a partir de parâmetros de valor de mercado, em alinhamento com diretrizes do Decreto-Lei n. 3365/1941, muito anterior à vigência da atual Constituição.

Mesmo no caso da desapropriação-sanção por título da dívida pública, o parâmetro adotado é o “valor real de indenização”, referente ao valor venal do imóvel, de acordo com regulamentação do Estatuto da Cidade. Ou seja, independentemente da finalidade que o proprietário expropriado tivesse conferido ao imóvel, ele deve receber ainda o valor total do bem.

Por isso, a margem de regulação dos municípios no campo da desapropriação punitiva, com pagamentos abaixo do valor de mercado, como fez Barcelona, apresenta um problema jurídico de partida. A ameaça da desapropriação deixa de ser um instrumento forte de pressão sobre o capital imobiliário, que vê um interesse econômico especulativo em deixar os imóveis desocupados e sem utilização.

Uma alternativa de pressão seria adotar o instrumento de arrecadação de bens abandonados, previsto no Código Civil de 2002. A arrecadação de bens abandonados consiste na possibilidade de o poder público municipal transferir para o seu patrimônio imóvel abandonado pelo proprietário ou proprietária por período superior a três anos. Esse mecanismo, inclusive, foi expressamente previsto no Plano Diretor de São Paulo, em 2014. No entanto, não há notícia de sua implementação no relatório de monitoramento do plano disponibilizado pela Prefeitura.

Outra estratégia seria revisitar o próprio conceito de indenização justa, para contemplar nesta análise a forma como proprietários e proprietárias usam seus imóveis. Por meio de reforma da legislação infraconstitucional, incorporar parâmetros de cálculo do valor da indenização que contemplem o princípio de função social da propriedade consagrado na Constituição de 1988. Afinal, o que deve ser uma justa indenização quando o imóvel não cumpre sua função social?

O contexto regulatório desfavorável dificulta a realização de políticas públicas que busquem assegurar uma melhor destinação a imóveis ociosos. Sem enfrentarmos os gargalos jurídicos, institucionais e políticos que temos no Brasil, ampliar o acesso à moradia por meio da utilização deste patrimônio ocioso será praticamente impossível. Como afirma Lucía Martin, secretária de habitação de Barcelona, “nós não podemos permitir que haja habitações vazias na cidade.

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